Tempos de pandemia e necropolítica: ainda há tempo de infância?

Walter Omar Kohan[1]

UERJ

Vivemos tempos muito difíceis no Brasil. Ontem foi demitido ou demitiu-se o ministro de educação, A. Weintraub. Aberta e explicitamente antidemocrático, seu último ato foi todo um símbolo de sua gestão: a revogação de Portaria N. 13 de 11 de maio de 2016, que estimulava cotas de vagas para negros, indígenas e pessoas com deficiência, em cursos de pós-graduação das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES). Foi sua despedida, quando já sabia que iria deixar o cargo. E mesmo que essa medida deva ser anulada pelo Legislativo, é um símbolo de uma gestão: um desserviço absoluto à educação pública brasileira, um ataque frontal às classes mais excluídas, uma afronta e desonra ao país de Paulo Freire.

O ex-ministro participa de um bando que está fazendo uma guerra não declarada. Em certo sentido, a guerra não é nova e esse bando se recria e reconfigura com diversas roupagens e atores, na forma de um projeto colonizador que desembarcou na América já faz mais de cinco séculos. Trata-se de uma guerra permanente, silenciosa, persistente, que esconde um projeto racista, misógino, assassino que, por diversos meios, procura excluir todas as formas da diferença que não se acomodam ao seu projeto “civilizador”. As comunidades indígenas, negras, LGBT e, de forma mais geral, as mais empobrecidas testemunham como nenhuma outra essa guerra desapiedada e sem trégua que atravessa as Américas. O mais específico da banda que atualmente governa o Brasil é a virulência e o desenfado, o caráter ostensivo e brutalmente exterminador, de sua estratégia. Eis que o governo Bolsonaro vive da morte. Isso revela-se nos símbolos, na liturgia e na estética armamentista, bélica, militar, mas também na sua política económica, educativa, cultural, diplomática, sanitária. É o cenário mais gritante da necropolítica: um dispositivo de governo para, como diria Foucault, fazer morrer e não deixar viver. Essa guerra não declarada é nossa condição presente.

Nesse sentido, a pandemia tornou-se um aliado do governo, mais um instrumento de sua política da morte. O presidente, no melhor dos casos lamenta as mortes que ele mesmo não procura evitar; ao contrário, banaliza e naturaliza a morte, afirmando que é o destino de todo mundo e que os mais fracos têm que morrer, fazer o que? É sádico e criminal e deverá ser julgado pelos seus crimes de guerra. Para perceber que se trata da mesma política do governo, nos mais diversos campos, basta notar que a quem mais afeta a pandemia é justamente aos beneficiários das cotas da Portaria revogada ontem pelo ex-ministro da educação. Só não percebe quem não quer.

Neste cenário, a educação no Brasil encontra-se encurralada. O atual parece ser o contexto mais propício para o governo acelerar sua política de distancialização da educação e de eliminação física de escolas e universidades. Se as práticas educativas continuam à distância, para que – perguntaria alguém com cabeça neoliberal – seguir mantendo instituições deficitárias que mal davam conta do recado em tempos de normalidade? Para que malgastar recursos escassos que poderiam ser usados com outros fins? Para que manter uma instituição tão improdutiva em vez de tecnologizar e digitalizar o mundo educativo? O vírus parece contribuir com bons ventos na medida em que de fato provocou o fechamento de todos os prédios escolares e universitários, algo inédito, pelo menos deste lado do mundo. Não deveríamos aproveitar o vírus e desescolarizar de vez a sociedade? O Ivan Illich que me perdoe: estaria certamente retorcendo-se em seu túmulo pelas pretensões anti-libertárias de tal movimento.

Penso, ao contrário, que, em certo sentido, a escola está se fortalecendo com a pandemia. Não considero as novas tecnologias inimigas ou desinteressantes. Ao contrário. Tenho participado, como muita gente, de diversas tentativas de experimentos educativos remotos nestes meses de pandemia e considero que a digitalização das relações pedagógicas não é inteiramente negativa. Ao contrário, muito de interessante pode acontecer. Afinal, trata-se de um meio, que nunca é apenas um meio e que pode acolher sentidos pedagógica e politicamente atraentes. Contudo, mesmo com todos esses aspectos mais ou menos satisfatórios e interessantes, a sensação que predomina, em cada um dos encontros remotos, é a de que alguma coisa do escolar é insubstituível, impossível de ser digitalizada. Tentarei desdobrar essa afirmação.

A pandemia tem-nos mostrado algumas coisas com diáfana nitidez. Por exemplo, a diferença radical entre as escolas públicas e particulares e, de um modo mais geral, entre a educação pública e a educação privada; e que, para dizê-lo claramente e com Simón Rodríguez, a escola (que precisamos inventar) só pode ser pública, comum, geral, para todos. Porque quando ela se particulariza, os efeitos pedagógicos e políticos tornam-se anti-educativos. Digo “a escola que precisamos inventar” porque não estou me referindo à instituição escolar, ao que de fato acontece nos prédios escolares que fazem parte de um sistema educativo, senão à escola como modo de habitar a educação: a escola que se faz (ou não) quando se entra numa escola ou numa universidade ou em qualquer outro lugar em nome da educação; a escola como uma certa forma de colocar o mundo em questão e perguntar por que ele está sendo da forma que está sendo e de que outras formas ele poderia ser. Essa escola, que bem poderia coincidir com a escola-instituição ou pelo menos coabitá-la, é sem condições: ela não pode ser apenas para os que têm condições tecnológicas ou materiais de conectividade plena; e ela também exige um tempo especial, por isso os gregos chamaram as escolas, com a palavra skholé, tempo livre, que em latim se diz otium. Como ensina J. Rancière, as escolas não nasceram para aprender e ensinar porque para isso não faz falta em um prédio escolar; pode se aprender e ensinar em qualquer outro espaço social; porém, é necessária uma escola para liberar o tempo dos seus usos produtivos. Em nenhuma outra instância do social pode se viver o tempo livre, a não ser num parque, justamente ao ar livre, na forma de um recreio que, não por acaso, é o momento preferido das crianças na escola instituição. Por isso, em certo sentido, a pandemia tem tido um efeito escolar: porque ela tem interrompido e suspendido uma certa produtividade e liberado – pelo menos para alguns – o tempo para uma experiência improdutiva. Como se estivéssemos na possiblidade de um recreio, com tempo liberado, para brincar e pensar.

De modo que, em certo sentido, a pandemia nos ofereceu condições de tempo singulares, em especial aos que não estamos sufocados pelas demandas das instituições particulares, as que fazem neg-otium com a educação, e que, portanto, negam o tempo livre necessário para fazer escola fazendo, literalmente, uma anti-escola. Isso nos ensinou Simón Rodríguez: que uma escolar particular é como uma negação da escola, uma contradição. Também por isso a educação, nessa perspectiva, só pode ser pública, comum, popular.

Claro, também percebemos que não é só de tempo que se faz uma escola e que é preciso, por exemplo, corpos bem alimentados. E num lugar como Brasil, há muitas crianças e jovens que fazem na escola-instituição a principal (ou única) refeição de cada dia. E também percebemos, justamente, que a escola se faz com corpos presentes, corpos que se tocam, se abraçam, se cheiram e até se empurram e se atropelam; e ainda percebemos, como dizem Masschelein e Simons, que fazer escola exige uma suspensão, uma distância e uma profanação entre a escola e a família (e todas as outras instituições sociais), ou seja, que não é possível ser mãe ou pai e docente, filha ou filho e aluna ou aluno ao mesmo tempo porque justamente ao se fazer escola é que essas e todas as outras instituições sociais estão sendo suspendidas e colocadas em questão.

E já que pensamos em colocar em questão, nesses tempos de pandemia estamos aprendendo algo que Paulo Freire, o grandíssimo mestre pernambucano, dizia e vivia com sua serena alegria: que fazer escola é uma questão de infância. Não de educar as pessoas de certa idade, mas de viver, as pessoas de todas as idades, uma vida infantil. Com isso quero dizer que, com a pandemia, temos também sido convidados a habitar novamente a infância, a perder nossas certezas, preconceitos, e perguntar como alguma vez já perguntamos: inquietos, curiosos, para saber, e não porque sabemos, mas porque queremos entender o mundo, porque o sentimos como se fosse a primeira vez. Vivemos um tempo em que os nossos saberes se escorregaram, nossas certezas amoleceram e podemos então experimentar a força de um perguntar infantil. Até tivemos que aprender a falar novamente e sentimos que gaguejávamos ao pronunciar palavras que já não podiam ser pronunciadas da mesma forma. E ainda estamos nesse processo de aprender outras palavras.

Paulo Freire pensava e habitava, com seu próprio corpo errante, a infância, uma pedagogia infantil da pergunta. Considerava que a infância não é apenas algo que educamos, mas algo que precisamos manter vivo para poder fazer escola com pessoas de qualquer idade. Talvez por isso o atual governo tenha declarado Paulo Freire como um inimigo: não pelas suas pedagogias ou teorias pedagógicas, porque ele seria marxista ou comunista, como afirma de forma descuidada, mas pelo seu compromisso com a precariedade, a possibilidade e a estrangeiridade que esconde uma vida infantil. Repitamos: o tempo dessa infância freireana que habitamos ao fazer escola não é o das idades, anos, meses ou semestres. Essa experiência infântil não vive no tempo cronológico, do calendário, senão no tempo aiónico do brincar, do acontecimento, da arte, do amor, da pergunta, do pensamento, da escola, enfim, da filosofia. Heráclito que o diga.

Só se pode fazer escola nesse tempo infantil. Eis o paradoxo da pandemia: deu-nos um tempo, mas tirou-nos o espaço e os outros corpos. Deu-nos a possibilidade de nos fazer as perguntas, mas nos tirou os amigos e amigas com quem fazê-las, a insubstituível comunidade de sentido para conversar sobre o mundo compartilhado que essas perguntas abrem. E, envolvidos nesse paradoxo, os corpos que somos clamam pela volta da escola. Primeiro, pelo retorno dessa escola-instituição, regida por khrónos, a da organização do trabalho pedagógico, do sistema que alimenta e dá sentido à vida de tantas crianças no Brasil. Khrónos e essas escolas são fundamentais para a vida social, em particular dos mais excluídos, e isso também temos aprendido na pandemia. Contudo, a escola infantil, a escola que tem a infância como condição e não como objeto de formação, se faz com corpos presentes mas em outro tempo. Para fazer uma escola infantil precisamos dos cinco sentidos e mais alguns. E precisamos, sobretudo, do presente que chronos não tem (porque ele simplesmente passa e vive do movimento) e de nossa presença nesse tempo presente da infância. Fazer escola exige um tempo infantil e educadores infantis porque é uma experiência de duração, intensiva, que prolonga a temporalidade presente: o acontecimento que interrompe a sequência cronológica e permite uma experiência que se faz presencia, num tempo presente. É a vida docente como um presente feito presença.

Eis quiçá algo que possamos aprender da pandemia os que teimamos em fazer escola: que talvez seja tempo de voltar à infância, não a nossa infância cronológica mas sim ao nosso tempo de infância, aquele que vivemos quando crianças cronológicas e que, como educadores, temos sido capazes de manter vivo, cultivar e cuidar, como fazia o mesmo Paulo Freire, que recebeu, entre tantos outros prêmios, em Ponsacco, Itália, o de “bambino permanente” (menino permanente) em 1990, quando tinha quase 69 anos de idade. Paulo Freire sabia que manter vivo o tempo infantil era uma condição para manter viva a escola em cada um de nós. Com essa inspiração menina, infantil, vamos à escola, com a infância, em busca de um tempo por vir onde, parafraseando o final de Pedagogia do Oprimido, seja menos difícil amar.


[1] Professor titular da UERJ, pesquisador do CNPq e da FAPERJ. Coordenador do Projeto “Filosofia na Infância da Vida escolar” (CAPES-PrInt).

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