Chico Buarque e o arbítrio de ontem (e hoje)
Romulo Mattos
PUC-Rio, historiador
No dia 19 de junho deste ano Chico Buarque completou 76 anos. O seu aniversário pode ser um bom motivo para citarmos a reabertura da temporada de perseguição a esse que é um dos principais compositores da História da MPB. A primeira e mais duradoura fase de ataques ao artista foi durante a ditadura militar. Foram muitas as rusgas entre o compositor e os militares.
“Apesar de Você”, de 1970, expressa como poucas canções a revolta nos chamados anos de chumbo, ao evocar a mitologia do “dia que virá” e criticar o general-presidente em exercício, Emílio Garrastazu Médici. Segundo o pintor e arquiteto Sérgio Ferro: “virou hino na cela, cantado aos berros desafinados” pelos presos políticos do Tiradentes, em São Paulo[1]. Os censores perceberam o erro de ter liberado essa música e a proibiram, assim como puniram o censor incompetente, recolheram os compactos das lojas e destruíram exemplares que estavam na Philips. Mas a versão gravada pelo cantor (houve outras na mesma época) vendera 100 mil cópias em apenas uma semana, e se tornara um sinal de reconhecimento entre aqueles que lutavam contra os militares. Em um interrogatório, o cantor afirmou que a letra tratava de uma mulher muito “mandona” e “autoritária” com quem se relacionara[2]. Essa artimanha não o livrou da insistência dos fardados em tratá-lo como inimigo depois desse episódio.
A composição foi gravada no mesmo ano em que Chico voltou do autoexílio na Itália, provocando um estardalhaço para garantir a sua segurança, o qual incluía um especial para a TV Globo, uma temporada na boate Sucata e o lançamento do disco Chico Buarque vol. 4. Ele estava naquele país para participar de um festival, quando foi decretado o AI-5, e por essa razão decidiu prolongar a sua estada. Certos fatores contribuíam para a aumentar a implicância dos militares em relação ao artista, como a autoria da peça Roda Vida (1968), dirigida por José Celso Martinez, e a presença na Passeata dos Cem Mil. Não obstante, o cantor não permitiu o uso de “A banda” (1966) como peça de propaganda oficial, e inscreveu uma música no Festival Internacional da Canção (FIC), de 1971, para retirá-la logo em seguida – tendo sido essa atitude reforçada pela assinatura de um manifesto contra a censura nesse espetáculo promovido pela TV Globo. O compositor foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional (ao lado de Tom Jobim, Edu Lobo e Ruy Guerra) e banido daquela emissora por mais de uma década.
Chico situa a virada da década de 1960 para a de 1970 como o contexto em que ele realmente começou a entender o que se passava no Brasil, pois a barra ficara pesada demais. Os problemas de Chico com os fardados se avolumaram após essa efetiva tomada de consciência. “Eles me encheram o saco, mas também enchi o saco deles”, afirmou o cantor sobre representantes do regime ditatorial[3]. O artista compôs várias músicas que criticavam a repressão e outros aspectos dos governos militares nos anos 1970, como “Deus lhe pague” (1971), “Construção” (1971), “Cordão” (1971), “Partido alto” (1972), “Cálice” (1973), “O que será” (1976), para citar apenas as mais conhecidas. As dificuldades com a censura – iniciadas em 1966, com a proibição da canção “Tamandaré”, por ordem da Marinha – atingiram níveis elevados. Foram censuradas as composições como “Bolsa de valores” (1971), em homenagem ao cantor da Velha Guarda Mário Reis, mas tida como ofensiva à imagem das mulheres pelos censores, e “Cálice” (1973), cuja apresentação no festival Phono 73, ao lado do coautor Gilberto Gil, foi sabotada por agentes da ditadura, que desligaram o seu microfone.
A peça Calabar (1973) teve o texto aprovado, mas não a montagem. Os censores demoraram a autorizar o espetáculo até o ponto de os seus produtores – os autores Chico e Ruy Guerra, além do ator Fernando Torres – não conseguirem mais arcar com os custos. Meses depois eles entraram com um recurso e viram a peça ser finalmente proibida. Os dois primeiros promoviam o debate sobre a figura de Calabar: tratado como o traidor dos portugueses no Nordeste do Brasil no período colonial, teria sido ele um herói por considerar que os holandeses seriam melhores colonizadores? Esse questionamento guardava uma relação com a figura de Carlos Lamarca, militar desertor que se tornara guerrilheiro.
Além da peça, o título do disco Chico canta Calabar foi proibido e virou Chico Canta. Já a capa com o nome “Calabar” pichado em um muro foi retirada de circulação. Mas o cantor fez questão de que a ficha técnica da capa proibida fosse mantida no novo projeto gráfico, simples e sem imagens. “Vence na vida quem diz sim” (1973) foi integralmente vetada, enquanto “Basta um dia” teve versos modificados para ser aproveitada na peça Gota d’água (1975). “Ana de Amsterdã” aparece em versão instrumental, embora tivesse sido gravada com letra no álbum “Chico e Caetano” (1972). “Bárbara” tem a expressão “de nós duas” mutilada na fita master, por aludir ao lesbianismo, tendo ocorrido o mesmo com a palavra “sífilis” em “Fado tropical”.
A situação ficou insustentável para Chico Buarque, que chegou a ter duas músicas vetadas a cada uma liberada[4]. A solução foi o disco Sinal Fechado (1974), em que ele interpreta outros compositores. Mas Chico inventou o personagem Julinho da Adelaide para conseguir gravar uma composição própria nesse álbum, o sucesso “Acorda amor”, que descreve uma prisão semelhante à que ele sofrera, em 1968. “Jorge Maravilha” (1974) foi igualmente atribuída àquele sambista fictício. Para conseguir a sua liberação, o autor incluiu parte da letra que lhe interessava misturada a outros trechos, sem sentido, os quais foram excluídos da versão gravada. Muito se dizia que Chico se referia a Amália Lucy, filha do general-presidente Ernesto Geisel, no refrão: “Você não gosta de mim/ Mas a sua filha gosta”. Mas esses versos eram direcionados aos agentes de segurança que lhe pediam autografo para as suas filhas. Mais uma canção foi assinada com o nome de Julinho da Adelaide: “Milagre Brasileiro”, gravada apenas em 1980, por Miúcha.
Depois que essa farsa montada por Chico Buarque foi denunciada pelo Jornal do Brasil, a censura federal passou a exigir cópia do RG e do CPF dos autores. Chico viajou com a família à Itália, onde começou a escrever a novela Fazenda Modelo (1974), que critica as formas de dominação social e o milagre econômico, tendo como cenário uma comunidade bovina. Foi um livro escrito “com raiva”, nas palavras do artista, porque ele não podia fazer canções[5].
De volta à música, as dificuldades continuaram com “Tanto mar” (1975), que saúda a Revolução dos Cravos, em Portugal, e por essa razão foi proibida de ser cantada no show Chico & Bethânia. Os músicos tocavam e o público acompanhava com palmas, embora na última noite Chico tenha peitado a ditadura e entoado os versos censurados. A edição portuguesa do LP Chico Buarque & Maria Bethânia ao vivo (1975) contém a versão original, com letra. No Brasil, a mesma música foi publicada só com a parte instrumental. Em 1978, o artista a reescreveu porque aquela revolução frustrara as expectativas das esquerdas políticas.
Uma de suas vitórias mais expressivas sobre a ditadura foi a gravação de “Meu caro amigo” (1976), uma música em forma de carta que avisava ao teatrólogo Augusto Boal que não era hora de voltar de voltar de Lisboa, uma vez que a situação no Brasil estava “preta”, conforme canta. A censura foi formalmente extinta em 1978, e depois disso Chico escreveu com Novelli “Linha de montagem” (1980) para ser apresentada em shows organizados pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. O evento foi proibido, mas o cantor a gravou em um compacto cuja receita foi revertida para o Fundo de Greve. Vale lembrar que ele compusera “Primeiro de Maio” para comemorar a data em 1977, no momento em que o Novo Sindicalismo se organizada no ABC paulista. Em 1979, fora um dos principais idealizadores dos shows do Dia do Trabalhador.
Chico também compareceu aos últimos momentos da luta contra a ditadura. No movimento pelas Diretas Já, em 1984, não apenas subiu nos palanques, como compôs canções sobre esse assunto. “Vai passar” e “Pelas tabelas” tratam da experiência do povo nas ruas. A primeira, em parceria com Francis Hime, apresenta uma crítica à atuação dos militares no poder (“A nossa pátria mãe tão distraída/ Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações”), enquanto a segunda explora a confusão do individual com o coletivo, ao abordar um sujeito procurando a amada no meio da manifestação pelas Direitas.
Esse histórico do combate de Chico à ditadura por meio da música o credencia como um dos maiores representantes da canção engajada, tendo continuado essa tradição mais ou menos de onde Geraldo Vandré parou. Embora a tendência de se enxergar a obra de Chico sempre por meio do político não o satisfaça, ela de certa forma se cristalizou entre o público brasileiro. E isso talvez explique os ataques que vêm sofrendo em suas redes sociais (que são invadidas por agressões verbais de baixo calão), em restaurantes (onde já foi xingado e ameaçado por frequentadores), em sua própria casa (tendo sido alvo de denúncias não comprovadas de mal trato a animais domésticos), da Embaixada do Brasil no Uruguai (que retirou o filme Chico: artista brasileiro, de Miguel Faria Jr., de uma mostra realizada em tal país), de deputados bolsonaristas (que o acusam de receber dinheiro para apoiar governos petistas), e até do presidente da República, que manifestou má vontade em assinar o Prêmio Camões conquistado pelo artista – que não deixou barato e afirmou que o diploma sem a assinatura do chefe de Estado seria “um segundo prêmio”.
Cada vez mais é possível ler em livros a contestação da excelência de sua obra. Lobão[6] a resume por meio do suposto objetivo de: “ideologizar todos os discursos: folclorizar e edulcorar, com o acalanto do elogio fácil, o oprimido, seu fetiche favorito; hiperbolizar todas as narrativas da pobreza; acusar como opressor (…) o Outro, todos os que não pensam como eles nas suas problematizações paranoides (…)”. Omitimos aqui os xingamentos de baixo calão.
Perspectiva parecida é praticada por Miguel de Almeida[7], que promove esse misto de depreciação estética e esvaziamento da atividade política por meio da arte: “quase nada da produção militante resultou em boa cultura e por certo não foi o que ajudou a derrubar a ditadura, que caiu de podre”. E completa com a ideia de que a letra de “Quando o carnaval chegar” (1972) era: “tatibitate e misturava ao samba reclamações arrevesadas.
Em uma total inversão de sentidos, o cantor também é tratado como inimigo dos valores democráticos por meio de afirmações como: “Chico Buarque de Hollanda, o nosso ícone maior do totalitarismo cultural brasileiro”[8]. Negar o valor artístico da obra de Chico é a nova frente de batalha do revisionismo sobre a ditadura, uma vez que suas canções são lugares de memória da luta contra os militares. A opção por considerar o seu projeto musical como contrário ao ideal de democracia sequer merece séria contradita, mas é importante lembrar que essa atitude apenas legitima o arbítrio de ontem e hoje. Talvez a melhor resposta para esse oco palavrório venha das caixas de som repousadas nos parapeitos das janelas, que ressoam “Apesar de você” como forma de protesto organizado por setores da população que resistem a esse projeto de destruição do país, ao qual o governo federal está alinhado.
Bibliografia
ALMEIDA, Miguel de. Primavera nos dentes: a história do Secos & Molhados. São Paulo: Três Estrelas, 2019.
HOMEM, Wagner. Histórias de canções: Chico Buarque. São Paulo: Leya, 2009.
LOBÃO. Guia politicamente incorreto dos anos 80 pelo rock. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
RIDENTI, Marcelo. “Revolução brasileira na canção popular”. In: DUARTE, Paulo Sérgio, NAVES, Santuza Cambraia (organizadores). Do Samba-Canção à Tropicália. Rio de Janeiro: Relume Dumará: FAPERJ, 2003.
WERNECK, Humberto. Letra e Música. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
ZAPPA, Regina. Para seguir minha jornada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
[1] RIDENTI, 2003, p. 122
[2] WERNECK, 1989, p. 130
[3] ZAPPA, 2011, p. 257
[4] HOMEM, 2009, p. 123
[5] ZAPPA, 2011, p. 303
[6] 2017, p. 75
[7] 2019, p. 28
[8] LOBÃO, 2017, p. 75