Estado, Pandemia e Mulheres: educação à distância como a nova imposição estatal em prol do patriarcado

                                                                                   Monica Sapucaia Machado

Programa de Mestrado Profissional em Direito e do Programa de Mestrado em Direito, Justiça e Desenvolvimento do Instituto Brasiliense de Direito Público-IDP.

A pandemia do COVID_19 terá diversas facetas e inúmeras consequências. O mundo pré-pandemia alimentava o discurso de uma comunidade global. Nunca se viajou tanto, bens e indivíduos surfavam numa grande onda da globalização, da aldeia global, o mito de que éramos todos pertencentes ao nosso tempo.

No ocidente a figura do Estado foi sendo deteriorada. Propagado como um ente a parte, foi o Estado considerado velho, intransigente, despreparo, quiçá obsoleto. O fim do embate com o ideário comunista fez com que o capitalismo ficasse livre para aumentar as suas garras e pulverizar o discurso de que o Capital seria a liga entre os países, as culturas e as pessoas.

Alimentados pela ideia de individualidade, de personalidade, pela venda da cultura da autoestima, do amor-próprio, da (auto) valorização, foi o indivíduo do século XXI convencido de que as suas conquistas eram particulares, de que o entorno nada tinha de interferências nas suas vitórias e fracassos e que as barreiras que outrora impediam determinados grupos sociais de alcançar posições desejadas tinham sido eliminadas no século XX. Éramos todos, nos discursos estatais ocidentais, igualmente livres para competir.

As lutas identitárias foram se afastando das lutas por distribuição de renda (FRASER, 2007). Cada vez mais as caixinhas de identidade se entrelaçavam na busca por reconhecimento de direitos de afirmação e cada vez menos as lutas reivindicatórias por distribuição de renda eram encampadas. Nas primeiras duas décadas do século XXI as pautas de reivindicação social se expandiram na mesma proporção que suas inserções na sociedade se tornaram efêmeras.

O capitalismo se tornou o modelo de todos, não mais questionado de forma sistêmica, apenas ponderado quando em choque com outros valores e na grande maioria das vezes ganhando essas disputas. O Estado de limitador e controlador do capital se transformou em funcionário, em gerente das suas necessidades e em atenuador das demandas sociais.

As mulheres ocidentais, com certeza, foram protagonistas do século XX quando debatemos as conquistas relacionadas a direitos formais. Saíram elas, no início do século XX, da condição de não-cidadãs para quase-igualdade de direitos em relação aos homens.

A maioria das nações ocidentais garante as mulheres e aos homens os mesmos direitos políticos e sociais. Podemos votar, sermos votadas, comprar, vender, casar, separar, ter ou não filhos. Chegamos a presidências da República, Parlamentos, chefiamos empresas multinacionais, fomos ao espaço. Sempre que tem um encontro mundialmente importante, um fórum decisivo, UMA mulher lá está.

Segundo o Banco Mundial as mulheres representam 38.8% da força de trabalho do mundo desde 1990, porém se recortarmos apenas a América Latina, Europa e América do Norte as percentagens são 41.8%, 45.9% e 46.2% respetivamente.

Podemos dizer que o século XX foi o século das conquistas formais das mulheres, foi o momento histórico do rompimento das barreiras do Direito e do silêncio em relação a invisibilidade das desigualdades pelo qual todas nós, umas mais do que outras, sofremos continuamente.

Em relação aos direitos sociais podemos dizer que a Educação foi a campeã do mesmo século XX. Praticamente todos os países oferecem educação pública as suas crianças. Em 1976 apenas 65,1% das pessoas eram alfabetizadas, em 2018 eram mais de 86% (WB, online)

Nessa seara então as mulheres arrasaram, de iletradas elas passaram para a maioria das alunas dos cursos superiores no mundo todo. No Brasil, por exemplo, são maioria no Direito, na Medicina, na Arquitetura, respondendo à lenda de que a educação superior seria a porta de entrada para os mercados de trabalho valorizados e o caminho a autonomia econômica e a ascensão social.

A partir da lógica de que a força de trabalho da mulher é necessária ao capitalismo, fomos nós, em busca de um lugar ao sol. Nessa caminhada fomos nos deparando com as dificuldades de transitar por um mundo público desenhado para e pelos homens, e mesmo que as amarras legais estivessem a ser retiradas, os preconceitos, as reservas de mercado e principalmente o exercício da maternidade e dos cuidados nos tiravam, e ainda tiram, oportunidades de participar da sociedade capitalista de forma equânime.

Não cabe aqui gastarmos tempo expondo os dados da desigualdade de gênero, mas sabemos que ganham as mulheres menos do que os homens em todos os lugares do mundo. Somos menos de 30% das parlamentares globalmente, menos de 20% das CEO das maiores empresas. Antes mesmo da pandemia, ainda faltava muito para que a igualdade, de fato, se materializasse.

Isto posto, uma das coisas que as mulheres vêm a reivindicar desde que o trabalho remunerado externo se tornou uma realidade é a divisão das tarefas domésticas e de responsabilidades com a prole.

Aos homens essa responsabilidade pouco se transferiu, apesar de em alguns países, licenças parentalidades terem sido implantadas e os afazeres domésticos divididos, as estatísticas mostram que não foram com os homens que as mulheres se apoiaram para conseguir tempo para o trabalho, mas sim com o Estado, especificamente as escolas.

A permanência das crianças nas escolas, principalmente em período integral foi o suporte mais importante para que as mulheres pudessem redimensionar o tempo ao preenchimento de postos de trabalho. Além da escola regular, creches para os menores, atividades pós-escolares e programas de contra turno foram, até a pandemia, o alicerce das mulheres urbanas ao emprego.

Foi então que a pandemia chegou, desmontando o nosso modelo de vida, parando a roda do mundo, estacionando os aviões, diminuindo as linhas de produção, aprofundando as crises econômicas em curso, como no Brasil e ressignificando o Estado e a opressão as mulheres.

A casa, espaço ainda de domínio feminino, se tornou o local de passagem do tempo. Os homens que pouco ali ficavam e que pouco dali se preocupavam se viram obrigados a participar dos afazeres domésticos, do cuidado com os filhos e os idosos. Muitos se depararam com inúmeros afazeres que nunca souberam existir e visualizaram uma carga de trabalho que não estão habituados a carregar.

Os índices de violência doméstica aumentaram consideravelmente. As crianças e as mulheres muitas vezes se tornaram vítimas mais vulneráveis na mão dos agressores e a resposta estatal se tornou mais inefetiva e demorada.

As mulheres pobres, especialmente as mulheres negras, se viram como empregadas de atividades essenciais. A economia do cuidado como enfermagem, cuidado de idosos, limpeza entre tantas outras funções que historicamente foram desvalorizadas, mal remuneradas e relegadas as mulheres pobres se tornaram funções ainda mais ingratas quando obrigaram as suas executoras a manter a rotina mesmo em quarentena, expondo a si e a sua família aos riscos da doença.

As mortes, o desamparo, a solidão e o medo que a todos assola têm sido especialmente cruéis conosco. As desigualdades se aprofundam e as opressões aumentam. No entanto, o intuito é debater um ponto específico: a imposição do trabalho remoto e da educação à distância.

Quando as políticas de distanciamento social começaram a ser implantadas, o discurso mais presente era “slogan” de que não estávamos de férias. Orientados pela preocupação com as demandas do capital e os seus efeitos na economia, os Estados que optaram por impor limitações de deslocamento e aglomeração se encarregaram de autorizar meios para que a produção de bens e serviços não fosse completamente interrompida. Por isso foram autorizados os teletrabalhos para atividades que até então eram necessariamente presenciais.

As regras foram flexibilizadas e as exigências relativizadas. Homens e mulheres que ainda detinham empregos foram direcionados aos home offices, muitas vezes sem apoio suficiente, utilizando da própria estrutura e trabalhando por salários menores e com cargas maiores. Paralelamente, a permanência de mais tempo em casa fez com que aumentassem os afazeres domésticos, impondo mais tempo e trabalho principalmente as mulheres.

Na mesma esteira as crianças foram retiradas da escola e com o mesmo “slogan” adaptado fomos informadas de que não poderiam perder o ano de estudos por isso seria disponibilizado o ensino à distância.

Cada país e região aos seus moldes desenvolveram mecanismos de oferecer aulas online ou por televisão, rádio ou mesmo apostilas aos alunos e alunas da rede de ensino. Encima da recuperação da sua importância no imaginário da sociedade, o Estado decide de forma impositiva em manter o ano escolar porém esqueceram de um detalhe: não combinaram com os russos, ou melhor, com as russas.

As crianças, até 12 anos, precisam de supervisão pedagógica constante para administrar o processo de aprendizagem, as tecnologias nem sempre são de fácil manuseio. O cumprimento dos horários e prazos carecem de permanente vigilância. As crianças em processo de alfabetização precisam de apoio para ler e entender atividades. Além disso, muitas famílias têm mais de uma criança em momentos diferentes de aprendizagem e com necessidades distintas de apoio. Essas tarefas não são possíveis virtualmente.

Sozinhos as crianças não conseguem seguir a educação à distância, porém isso não é uma descoberta da pandemia ou um erro de metodologia. Os órgãos governamentais para educação sabiam muito bem que a educação à distância precisaria de um executor na ponta, sabia-se isso quando ela foi pensada e implantada e também sabiam quem seria esse suporte: as mães.

O Estado desenhou a saída educacional à pandemia transformando as mães em tutoras das suas crianças. O Poder Público decidiu que iríamos cumprir essa função e a nós, coube apenas nos resignar.

Obviamente não está nas portarias, regras e leis que será a mãe a responsável, mas tinham todos consciência de que caberia a nós essa função, até porque os homens nunca estiveram ao cargo dessas obrigações. O Estado de forma organizada nos obriga a gerir a educação formal enquanto mantemos também à distância o trabalho remunerado, como se dizendo que essa sempre fora obrigação nossa e ele, o Estado, estava apenas nos aliviando.

As escolhas são impossíveis: caso não cumpríssemos com a educação à distância seríamos responsáveis por deixarmos os nossos filhos e filhas a mercê da ignorância e estaríamos a fugir de uma obrigação inerente a função social de parentalidade: dar educação. Por outro lado, se abdicamos dos empregos renunciaríamos a mais de um século de caminhar para a autonomia econômica das mulheres, e na maioria das vezes colocaríamos em risco a sobrevivência nossa e das nossas famílias.

O Estado, que foi a ceder ao longo dos tempos as desigualdades formais e pressionado pela luta das mulheres a produzir políticas públicas que nos possibilitasse participar ativamente da sociedade, nos deu um cavalo de pau e num giro de 180 graus expôs o seu compromisso patriarcal. Sem titubear colocou as nossas parcas conquistas na berlinda.

Sabemos que o machismo e o racismo são as mais tristes provas de que o capitalismo não venceu a humanidade, porque os donos do poder preferem perder dinheiro do que incluir as mulheres e nos negros. Nessa pandemia a educação à distância tem sido uma prova cabal que o Estado ainda não nos vê como agentes econômicos relevantes e apesar de as leis dizerem ao contrário, o Poder constituído ainda imputa a nós, estrutural e formalmente, as tarefas do cuidado.

Assim a institucionalidade estatal reafirma a nossa inferioridade no jogo econômico e nos relega a submissão aos homens. Cabe à (nós), reconhecer essa atitude e combatê-la através da exposição dessa lógica desigual e da exigência de políticas que obriguem a inclusão dos homens nas tarefas de manutenção da vida.

Educar não é apenas aprender conhecimentos catalogados, mas também compreender a sociedade que vivemos e desenvolver os valores e os compromissos essenciais na construção de uma realidade mais igualitária, plural e inclusiva. As crianças de hoje precisam ser ensinadas a lutar contra o sexismo, o racismo, a xenofobia, precisam ver todas e todos como sujeitos integrais de direitos e reconhecer as múltiplas formas de vida em sociedade.

Quando o Estado, em tempos de crise, reforça o papel da mulher na responsabilidade solitária com as crianças reafirma também o seu descompromisso em garantir a igualdade. Logo é urgente que repensemos o Estado que queremos para assim agirmos na transformação dele.

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