Os extremos tocam-se? Notas sobre pandemia, vigilância e negacionismo
Pedro Hussak / UFRuralRJ
O filósofo Giorgio Agamben foi um dos primeiros a pronunciar-se a propósito do corona vírus, enfocando o problema a partir de uma das preocupações do seu pensamento político, o estado de exceção[1]. Muito resumidamente, poder-se-ia dizer que ele aponta para o risco de que a pandemia possa ser a ocasião para o aprofundamento um de processo controle social já em curso, revelado no fato de que, na Itália, a sociedade tenha aceitado as medidas de isolamento impostas pelo Estado sem maiores questionamentos. Essa intervenção repercutiu bastante dividindo as opiniões entre aqueles que a seguiram e aqueles que a criticaram pelo fato de que estaria minimizando os efeitos da pandemia.
Um outro pensador, o francês Jacques Rancière, no texto Uma boa oportunidade?, artigo em que intervém sobre o tema da pandemia, faz uma menção implícita ao italiano quando critica o fatalismo embutido na crença de que as medidas de vigilância tomadas para conter a pandemia conduziriam inexoravelmente ao estabelecimento de uma distopia orwelliana em um futuro próximo.
Trata-se, aqui, de explorar uma afirmação feita por Rancière em relação à resposta dada pelas autoridades brasileiras à pandemia que, a meu ver, permite formular um paradoxo que surge quando a confrontamos com as preocupações referentes à resposta europeia à pandemia. Meu intento, nesse pequeno artigo, não é obviamente “resolver” o paradoxo, mas, antes muito mais, retirar o que dele dá a pensar.
A citação de Rancière é logo no terceiro parágrafo, após ele apontar que teorias usadas para explicar a crise, como o biopoder e a vigilância digital, já estavam “prontas” antes da pandemia.
No entanto, uma análise mais aprofundada revela que a gestão da crise por parte de nossos Estados não obedeceu exatamente ao paradigma do controle científico das populações. Para começar, poderíamos falar sobre os chefes de Estado que não acreditam na ciência, que trataram o coronavírus como uma gripe comum e pediram a seus cidadãos que retornassem rapidamente ao trabalho[2].
Rancière sugere que mesmo na Europa, os Estados na verdade não estavam preparados para lidar com a pandemia, o que implicou mesmo em dificuldades do estabelecimento de políticas, em função da falta de recursos humanos e materiais. No entanto, o caso brasileiro salta aos olhos porque o governo adotou mesmo uma postura negacionista em relação à ciência. Daí o paradoxo que pode ser formulado muito simplesmente: enquanto na Europa, as medidas de contenção geram uma desconfiança em alguns intelectuais de viés progressista de que possam ser um experimento de um grande processo de engenharia social, no Brasil amplos setores da sociedade denunciam, ao contrário, a falta de ação efetiva do Estado para combater a crise sanitária.
No caso Europeu, o trauma dos regimes totalitários faz com que se levante uma grande preocupação em relação ao poder do Estado sobre o indivíduo, e por isso há sempre um alerta sobre quais possíveis manobras que possam ser utilizadas para alcançar esse objetivo. Byong Chul Han, na linha de Agamben, aponta o problema da vigilância digital estatal, que já é uma realidade em muitos países asiáticos, argumentando que o sucesso de países como a Coreia do Sul em controlar a pandemia deveu-se a uma conjunção que reúne um sentimento de coletividade maior nos asiáticos – o que os tornam bastante colaborativos em relação às políticas públicas de saúde –,com o fato de que o Estado distribuiu aplicativos de geolocalização que indicavam se alguém estaria, por exemplo, aproximando-se de um infectado[3]. A questão e fundo é: nos países ocidentais, haveria o risco de que as medidas tomadas para o “controle” da pandemia poderiam ser usadas para o “controle” populacional, mesmo após o fim da pandemia.
Curiosamente, na presidência do Brasil prevaleceu um discurso de que a pandemia não seria grave, uma “gripezinha”, e que haveria interesses escusos – como por exemplo a “destruição” da economia nacional – na defesa de medidas de isolamento social. Isso levou a um conflito entre o governo central e outras esferas governamentais que “atentariam contra liberdade de ir e vir”, ao seguir a indicação de isolamento da Organização Mundial de Saúde. De mais a mais, evocando a “defesa da liberdade”, um projeto de uso de monitoramento de pessoas por celular que seria implementado pelo ministério da ciência e tecnologia foi vetado pelo presidente[4].
Sem entrar em uma análise dos pormenores da crise da pandemia no Brasil, gostaria de explorar algumas questões que nascem da estranha convergência entre o pensamento de tendência progressista na Europa e um governo de extrema direita com pendores autoritários no Brasil. Penso que é possível depreender dois aspectos dessa convergência: o primeiro refere-se às projeções intelectuais para o “depois” da pandemia; o segundo diz respeito ao negacionismo em relação à ciência que está na base dos conflitos sobre as políticas sanitárias atualmente no Brasil.
No que toca ao primeiro aspecto, cabe notar que logo nos primeiros momentos da pandeia na Europa, intelectuais apressaram-se em fazer projeções sobre que adviria no momento seguinte: ao lado da supramencionada postura “pessimista” de Agamben, é possível citar o “otimismo” de Ẑiẑek sobre o novo comunismo que ele acredita que virá como consequência do vírus[5]. O problema aqui não decorre do fato de que se possa fazer “profecias” sobre o que vai ocorrer, pois é muito natural que pensadores políticos tracem cenários futuros a partir dos dados que possuem. No entanto, o que é incômodo nessas profecias é que se acredite que algo vai acontecer, tanto para o bem quanto para o mal, por causa do vírus. Com isso, teríamos implicitamente uma certa ideia de destino que justamente contraria o princípio básico da política que, como bem argumenta Rancière, é a ação.
Penso que a comparação da política das autoridades brasileiras com a preocupação de intelectuais europeus gera uma contradição: por um lado, a necessidade de políticas de isolamento por parte do Estado para resolver a pandemia; por outro, o fato de que essas mesmas políticas possam conduzir a um controle social para além da pandemia.
Eu não estaria em condições de resolver essa contradição, mas a esse respeito, penso que, no viés de Rancière, talvez fosse possível esboçar uma crítica mais geral, que repercute na posição que ele adotou em relação à pandemia, a um aspecto do pensamento político de Agamben. Dado que o pensador italiano desenvolve seu pensamento a partir da ideia weberiana de que a modernidade não é outra coisa senão a secularização de princípios que vinham do mundo religioso, ele, em grande medida, desloca o problema político para o plano teológico. A vida nua seria uma instância completamente indefesa diante do poder soberano, e o “estado de exceção” vigente mesmo nas democracias liberais seria um beco sem saída contra o qual nada pode ser feito.
No entanto, se a questão supramencionada da vigilância digital – à qual somam-se efeitos colaterais como o que tem ocorrido atualmente no Brasil em relação ao uso de robôs para a atuação de milícias digitais que intimidam adversários políticos – aponta para um futuro no qual tendências políticas autoritárias tentarão valer-se de plataformas digitais para estabelecer um grande Big brother, as democracias, por outro lado, guiadas pela pressão popular, terão que aprender a lidar com esses problemas, impondo limites ao controle de dados. A fórmula do filósofo Vilém Flusser de que no futuro a “luta de classes” será entre “programadores” e “programados” dá uma pista de como ação política deverá ser guiada no sentido de uma reivindicação de acesso aos Big data[6]. Para Flusser, o ato político atual consiste em reprogramar, modificando os dados atualmente controlados por poucos “programadores” a fim de propor novas possibilidades para o meio digital no qual estamos inseridos.
Naturalmente, ainda há um longo caminho a ser trilhado até que se esteja em condições de questionar o uso dos dados, pois ainda não temos os meios pelos quais lutar contra o poder das grandes corporações de tecnologia digital, inclusive na forma como elas imiscuem-se no Estado, como quando oferecem “gratuitamente” pacotes de ensino à distância para universidades públicas. No entanto, cabe apenas apontar que a vigilância digital não é um destino inexorável ao qual não haveria outra coisa a fazer senão acatá-lo. Trata-se de descobrir novos mecanismos da luta política e entender que a luta contra a vigilância digital consiste também na defesa da democracia em sentido mais geral.
Quanto ao segundo problema que levantei, nomeadamente o negacionismo em relação à ciência, penso que há elementos interessantes a ser apontados quando o confrontamos com a crítica da modernidade à qual Agamben adere. Uma importante referência que o filósofo italiano usa para desenvolver seu pensamento é Michel Foucault que em Segurança, Território, População[7], argumenta que, ao lado do surgimento do poder disciplinar – que por meio de instituições forjou o indivíduo moderno – surgiu um outro tipo de poder – identificado nas primeiras campanhas vacinação na Europa – que tinha que ver com o controle populacional, o biopoder. Foucault propõe uma reflexão interessante no sentido de mostrar que a decisão de controlar uma epidemia pode depender de um interesse político, como por exemplo aumentar a população para enfrentar uma situação de guerra ou ao contrário de diminuí-la, segundo um outro interesse qualquer. Com isso, o biopoder invertia a fórmula do poder soberano de “deixar viver e fazer morrer”, propondo uma muito mais sinistra: “deixar morrer e fazer viver”.
Esse pequeno esboço da questão do biopoder levanta mais uma vez a estranha correlação com o atual negacionismo cuja desconfiança em relação às vacinas, assim como a desconfiança m relação às medidas de isolamento social, parte de uma paranoia de que haveria uma conspiração voltada ao “controle” e à retirada da liberdade da população.
Ora, mas se, nos seus efeitos, os discursos do biopoder e do negacionismo parecem encontrar-se, eles naturalmente têm origens completamente distintas: enquanto o discurso do biopoder insere-se na crítica mais ampla que identifica o fracasso das promessas de progresso social do grande projeto ocidental da Razão, o negacionismo atual parte de uma posição pré-iluminista que, sob certos aspectos, retorna ao pensamento “mágico” no qual um “remédio milagroso” pode ser apresentado como uma cura rápida.
Nesse sentido, o problema não tanto aponta as semelhanças entre ambos os discursos, mas perceber o que um conceito como o biopoder pode ajudar no sentido de pensar que respostas as forças progressistas no Brasil estão dando ao negacionismo científico. Infelizmente, o que verifica, muitas vezes, é uma defesa que parte de uma concepção um tanto “positivista” da ciência, como se o discurso científico fosse uma autoridade sem maiores questionamentos. Com isso, desconsidera-se mesmo um dos pilares fundamentais do pensamento científico, a dúvida. Justamente por colocar-se contrariamente a um pensamento dogmático, o desenvolvimento da ciência implica em um questionamento contínuo de seus resultados para, por meio de procedimentos e pesquisas, chegar a novos resultados.
No entanto, além disso, há ainda outro aspecto a ser considerado, pois se levarmos em conta a crítica filosófica da modernidade na qual o conceito de biopoder insere-se, seria possível problematizar ainda mais a concepção positiva da ciência, ao levantar o problema sobre a relação da ciência com o poder. Essa crítica, em termos gerais, refere-se ao fato de que a ciência não é neutra, mas pode ser instrumentalizada: ela pode tanto colaborar para o progresso social, quanto ser utilizada para a exploração predatória da natureza com as graves consequência ecológicas em que vivemos. Ao colocar a ciência diante de uma análise crítica, veremos que ela não está livre das disputas políticas e econômicas que estão colocadas na sociedade: as pesquisas para a produção de uma vacina, por exemplo, podem ser feitas em ou instituições públicas, visando a uma distribuição gratuita para a população, ou em laboratórios privados, cujo objetivo é o lucro.
Penso que a atual questão da legitimação do discurso científico remete a um livro que, curiosamente, é pouco mobilizado para a análise da situação atual. Trata-se de A condição pós-moderna de Jean-François Lyotard cuja a tese principal consiste em mostrar, a partir de um instrumental conceitual do segundo Wittgenstein, que o pós-modernismo não é outra coisa senão o fim dos meta-discursos de legitimação, dos quais naturalmente a ciência é um dos principais[8]. Não há espaço para discutí-la, mas cabe apontar que essa ideia está na base do que hoje se chama de “pós-verdade”: na falta de um meta-discurso de legitimação, a validação de um discurso passa a ser uma questão de poder na medida em que o que está em jogo é quem vai “vencer” a “disputa de narrativas”.
Esse problema da legitimação tem fortes implicações na atualidade se considerarmos que o vírus é invisível de modo que as políticas públicas de saúde exigiriam, em princípio, uma confiança da sociedade sobre o alerta da ciência a respeito de sua periculosidade. No entanto, atual panorama pode facilmente reverter essa situação, pois a “pós-verdade” opera, entre outras coisas, com a estratégia retórica da repetição, cujo efeito é a confirmação de certas crenças prévias que reforça a lógica das “bolhas”. Uma intensa campanha, por exemplo, nas redes sociais, afirmando que a doença é uma “gripezinha” e que as mortes decorreram de outras causas pode colocar em xeque o esperado consenso em torno da legitimidade do discurso científico na medida em que uma grande parcela da sociedade tenha uma adesão a essa campanha.
Eu também não teria uma resposta par o problema da legitimação do discurso científico, mas creio que se possa dizer algo sobre a defesa da ciência contra o negacionismo. A meu vez, tal defesa deve ocorrer dentro de uma perspectiva ética na qual a argumentação não se baseie simplesmente em um princípio que tome a ciência como uma autoridade final. Creio que a defesa da ciência deve vir sempre acoplada de um esforço de argumentação racional sobre como, por que e em que sentido ela é benéfica. Por isso, valores como a defesa da vida, a defesa dos mais vulneráveis, da dignidade humana entre outros devem guiar previamente a argumentação em defesa da ciência. Tal posição ética levará necessariamente a uma postura política na mediada em que ela se contrapor ao pensamento conservador que está na base do negacionismo.
Creio que as indefinições com as quais estamos lidando são fruto da própria época em que vivemos, por isso esse texto levanta mais problemas do que propriamente oferece respostas. Como bem lembrou Etienne Balibar, em emissão para radio France Culture[9], a época em que vivemos é uma espécie de interregno gramsciano, no qual um mundo anterior despareceu, mas um novo mundo ainda não surgiu. Tempos, assim, favorecem a incerteza e a desorientação, mas por isso mesmo eles provocam tanto o pensamento filosófico que, mais uma vez, dá provas de sua importância.
[1] Agamben publicou um artigo a esse respeito no jornal italiano “Il Manifesto” em 26/02/2020 que foi prontamente traduzido para o português <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596584-o-estado-de-excecao-provocado-por-uma-emergencia-imotivada>, acessado em 24/06/2020. Depois disso, o filósofo escreveu uma série de artigos rebatendo e discutindo as críticas recebidas.
[2] <https://n-1edicoes.org/039-1>, acessado em 24/06/2020.
[3] <https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html>, acessado em 24/06/2020.
[4] <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52357879>, acessado em 24/06/2020.
[5] << http://agbcampinas.com.br/site/2020/slavoj-zizek-coronavirus-e-um-golpe-estilo-kill-bill-para-o-capitalismo-e-pode-levar-a-reinvencao-do-comunismo/>>, acessado em 24/06/2020.
[6] “A distribuição da fotografia ilustra, pois, a decadência do conceito de propriedade. Não mais quem possui tem poder, mas sim quem programa as informações e as distribui”. In: FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, p. 27
[7] FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
[8] LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
[9] <https://www.franceculture.fr/emissions/les-chemins-de-la-philosophie/les-chemins-de-la-philosophie-emission-du-vendredi-24-avril-2020>, acessado em 30/06/2020.