Um futuro a consertar: antirracismo na ecologia pandêmica, e a filosofia política
Norman Madarasz
PPGF/PPGL
PUCRS
«Não quero morrer, não; quero outra vida”
Lima Barreto
A vulnerabilidade dos cidadãos à Covid-19 e as narrativas oficiais pelas quais justifica-se a violência cotidiana sofrida por afrodescendentes passam por um processo semelhante de negação de verdades. De fato, um dos efeitos ímpares de uma verdade é o negacionismo que ela também produz. No que tange às pandemias, a história mostra como verdades foram oportunamente negadas, e neste quesito não há nada de singular na pandemia causada pelo Sars-CoV-2. Quanto ao racismo, a filosofia verifica que afirmações sobre sua inexistência conceitual projetam véus de ignorância em sua atividade conceitual. Um ruído constantemente abafado oblitera o que não se cansa de dizer. A sobreposição da pandemia à explosão de movimentos antirracistas, – cujo foco é a violência homicida da polícia, a militarização de sua cadeia de comando e a inflação do seu orçamento pago aos custos de investimento social nas comunidades –, fez a cena da filosofia política tornar-se irrefutavelmente local.
Este “local” não diz respeito a um relativismo, mas à dinâmica estrutural pela qual surge uma verdade: a dinâmica produtora da filosofia política. O local é o que é situado, e o que faz com que a lógica tradicionalmente exclusionista da filosofia política deva se render ao que é manifesto. Por certo, em sua busca de análise das variações estruturantes e das relações conflitantes que são constitutivas das sociedades humanas, a forma em que a natureza e a sociedade entram em conflito em momentos de pandemias pegou a atual filosofia política despreparada. No entanto, considerando-se as decisões econômicas tomadas nas últimas décadas, este despreparo acaba por atingir também quase a totalidade das ciências. A medicina, com seus milhares de professionais mortos no combate à Covid-19 ao redor do mundo, parece escapar mal desta desorganização.
Na filosofia política, há de fato uma omissão quando não se postula, por meio de um juízo a priori sintético, a irresistível tentação a instrumentalizar epidemias e pandemias seja por governos democráticos ou pelos pós-coloniais, sintoma que faz da arte de governar uma engenharia demográfica cínica. Nas mesas onde políticas públicas nefastas são decididas, o fenômeno pandêmico se afasta da natureza. Em uma passividade intencional por parte de nossos governantes perante a força contagiosa, a pandemia vai muito além das catástrofes e integra-se às mais mortíferas tecnologias criadas pelas decisões “competentes”.
Ora, a tecnologia não é apenas o produto da criatividade humana, mas principalmente de sua excepcionalidade. Se lembramos frequentemente que há poucos domínios teóricos em que tanto se valoriza a exceção como na filosofia política, o que é menos dito é como a excepcionalidade se alia quase sempre à desigualdade. Primeiro, no que concerne à força: desigualdade entre cientistas, intelectuais e artistas em relação ao poder policial e militar. Segundo, no que tange às condições: desigualdade econômica e social das pessoas deixadas à margem pelo capitalismo financeiro, cujos representantes controlam mais do que nunca o modo democrático de governar.
Enquanto cresce a exceção no plano da filosofia política, o racismo se isola num discurso que parece ter apenas um valor histórico. Em contrapartida, quando fragmenta a exceção, a filosofia política integra o antirracismo na mesma ordem que a da superexploração do meio ambiente que deu vazão à atual pandemia. A exigência de incluir a história para entender sua própria cientificidade faz com que a filosofia política deva evitar recorrer à forma narrativa dos “grandes homens”. Tenta-se evitar à todo custo que uma ciência seja submissa à tirania. Neste sentido, a modelização da exceção atrela a atenção teórica às figuras do governo e do governante, deixando em segundo plano a lógica da engenharia social-demográfica. Assim, antes mesmo que se reproduza na sociedade, a desigualdade estrutura a própria filosofia política. Prova disso é a omissão na filosofia de um debate sobre a força causal das epidemias na sua estruturação conceitual. Retrospectivamente, nós pesquisadores somos todos culpados pelo desejo de evitar as implicações das epidemias sobre o modo em que pensamos política e história. Descobrimos, no entanto, que a representação das consequências políticas decorrente das epidemias levanta diretamente a questão ética sobre os fins da filosofia política, e como estes se situam perante a justificação de que haja necessidade da pobreza em uma sociedade justa.
Para convencermo-nos disso, cabe rever a narrativa em torno de uma das maiores atrocidades sofridas pelos brasileiros no século vinte. Trata-se do terror imposto pelo poder federal contra a insurreição na cidade do Rio de Janeiro despertada pela Lei da Vacina Obrigatória em novembro de 1904, e que ficou conhecida como a “Revolta da Vacina”. Uma releitura crítica deste acontecimento permitirá que façamos uma reapreciação da filosofia política conforme três orientações fundamentais, que apresentaremos em seguida.
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Considerando o acontecimento da revolta carioca a partir de seus efeitos, a narrativa tornada oficial repete a tomada de poderes ditatoriais por um presidente e um prefeito em plena República com a finalidade de fazer avançar o projeto de “reurbanização” da capital, à qual se junta a atuação de um médico megalomaníaco instituído de plenos poderes [1]. Uma irônica história dos grandes homens que merece ser suspensa para que direcionemos nosso foco para o deste povo, sem rosto, que heroicamente lutou contra a truculência de uma elite identificada como paulista. A derrota da hegemonia paulista fora desejada pela carioca, mesmo que seus muito semelhantes planos nunca tenham sido de fato contrariados, fazendo com que as duas frentes acabassem por se juntar em um massacre da população afrodescendente, nordestina e mestiça habitante do centro da velha cidade [2].
Conforme historiadores, era inegável a vulnerabilidade do Rio de Janeiro a epidemias.[3] Por causa delas, lamentava-se o difícil desenvolvimento da nação. O povo surgia então como obstáculo ao progresso, exatamente como também fora representado na narrativa da epidemia da febre amarela em 1850. Em decorrência das tantas mortes, a então capital brasileira carregava o sobrenome de “túmulo de estrangeiros”. Relatos desenvolvimentistas apontam a vulnerabilidade multi-epidêmica da cidade e como esta teria impedido a chegada de italianos, essenciais para substituição da mão de obra dos escravizados, para iniciar a necessária renovação do modelo econômico do país. É pouco dizer que naquele ano de 1850 a abolição não era cogitada, Dom Pedro II tinha apenas vinte e cinco anos. Reconhece-se no entanto que a epidemia plausivelmente tenha contribuído à Lei Eusébio de Queirós contra o tráfego internacional de escravizados no Brasil, numa tentativa de melhorar a imagem do país internacionalmente.[4] Portanto, ao ligar a epidemia da febre amarela com a situação das várias epidemias em 1904 (febre amarela, peste bubônica e varíola), o relato oficial da história nacional tenta tecer uma narrativa que enaltece a obra de uma ditadura sanitária contra o mal natural que assolava o Rio de Janeiro. Na mesma narrativa, tenta-se celebrar a transformação da política em engenharia social, na qual teriam sido os engenheiros que teriam resgatado, graças a deus, uma população urbana desinformada de um incômodo que a mergulhava em uma ignorância pior que a doença.
Na história tantas vezes contada, era esta “ignorância” o que fundamentalmente impedia que a população fosse vacinada contra a varíola. O tamanho desta massa demográfica tornou-se a justificativa perfeita para a instituição de poderes ditatoriais tanto ao médico quanto ao prefeito. No entanto, o que a narrativa não contemplava é que, visto pela perspectiva da população de afrodescendentes da região portuária, pessoas recentemente emancipadas da escravidão, o plano simplesmente não as beneficiava. Ao contrário, apesar de terem estado proibidas pelas leis escravistas de frequentar escolas e de se alfabetizar, não era a ignorância o que nelas primava, mas o medo justificado de um deslocamento forçado em direção aos morros e às piores regiões da cidade.
A “sanitizante” constatação da insalubridade da região portuária e de sua suscetibilidade a epidemias são parte da versão da história oficial da política administrativa. Seus planos de revitalização urbana não incluíam a manutenção dos residentes. Conforme esta versão, em reação ao decreto da Vacina Obrigatória, votado em 31 de outubro de 1904 e aplicado no dia 5 de novembro, moradores dos bairros do centro se aglomeram na Praça Tiradentes para tentar impedir a atuação dos agentes da ditadura sanitária do governo federal [5]. Para dispersar as massas, forças de ordem abriram fogo, dando início à insurreição popular “mais indomável de que já fora palco a capital da República” [6]. Espalhando-se por todos os bairros da cidade, o foco da revolta se encontrava no centro, nos bairros da Gamboa e da Saúde. Sua luta deve ser entendida como mais um dos atos das tantas comunidades pobres ao redor do mundo no século dezenove que visavam proteger seus moradores dos projetos burgueses de modernização[7]. Durante os dias da revolta, esses bairros foram bombardeados a partir da Baía da Guanabara e invadidos pelo exército, alegadamente na busca de um líder, o “Prata Preta”, cujo codinome deixa sem mistério o perfil étnico das comunidades em questão.
A derrota do povo afro-carioca neste conflito simboliza o aprofundamento da escravidão sob outras formas, e que é transformada em um racismo estrutural e institucional que tornou-se mais rígido com o passar do tempo. Mais do que prudência, é um dever ser cético diante da versão da história segundo a qual comunidades denominadas “pobres”, sem discernimento racial, teriam rejeitado por mera ignorância a vacinação contra a varíola. O estopim foi o deslocamento forçado de populações urbanas dos seus espaços de vivência. A resistência à vacina fora apenas a faísca. Por se defenderem com pedras, foram massacrados com balas, baionetas e bombas. Através da crueldade típica da postura anti-política da engenharia social, famílias inteiras foram expulsas do centro da cidade, vítimas da “febre da demolição” orquestrada pelo projeto modernista de reconstrução urbana.
Por comparatismo estrutural, a Revolta da Vacina representa no Rio de Janeiro o que era a Commune de Paris em 1871, tanto na resistência quanto nas sequelas deixadas por sua destruição.[8] Lembremos que a Comuna de 1871 foi brutalmente destruída por um exército fiel à burguesia francesa, reunida em Versailles, após o colapso do seu próprio Segundo Império, que fora derrotado pela Prússia em uma breve guerra entre as nações. Vítimas de um estado de sitio pela Prússia, que durava meses, milhares de operários, intelectuais e artistas franceses criaram um governo autônomo radicalmente socialista e reivindicaram uma condição independente para Paris. O Conselho atuou entre março e maio para organizar e defender uma população também rendida a deslocamentos forçados e à destruição de bairros na urbanização moderna da cidade. Historiadores sugerem que houve em torno de 10.000 massacrados em Paris pelo exército dos conservadores franceses (os números continuam sendo contestados) e centenas de deportados. No Rio de Janeiro, os fatos reais arriscam nunca corrigir o relato oficial desses dias de fogo. De acordo com a página do Ministério da Saúde, “a revolta deixa um saldo de 30 mortos, 110 feridos e 945 presos, dos quais 461 são deportados para o Acre”[9]. Acredita quem quiser.
Ao olhar a beleza de Buenos Aires, outro exemplo de extermínio racial, os barões e marqueses, cujos nomes espalham-se pela a cartografia carioca, não deixavam de sonhar com Paris. Estavam convictos de que a versão obscura do projeto de urbanização do Barão de Hausmann aliava-se com o sucesso do extermínio de uma parte da classe operária. Para além dos registros, na Revolta da Vacina, possivelmente milhares de afrodescendentes foram encarcerados na Ilha das Cobras. Quando os mais determinados dentre eles não “colaboravam”, eram deportados para o Acre, sendo assim foram jogados, sem condenação legal, mais uma vez, em escravidão. Assim como o foram os Communards na Nova Caledônia.
Por mais esclarecida que seja a pesquisa e a narrativa crítica de Nicolau Sevcenko sobre a Revolta, é curioso não encontrarmos em seu relato uma sugestão de que o povo do centro da cidade era composto majoritariamente de afrodescendentes.[10] Sua mais próxima observação é de que “não deixa de ser irônica a exclusão e eliminação sistemática de um número tão grande de pessoas, numa época em que o governo se esforçava com tanto denodo para atrair imigrantes estrangeiros.”[11] Quem seriam de fato estas pessoas, se não descendentes de africanos escravizados e emancipados no dia 13 de maio dezesseis anos atrás? Por fim, Sevcenko delega a Lima Barreto a confirmação: “O que nos sugere o autor é que a nossa República democratizou a senzala: acabado o privilégio jurídico de alguém em particular ostentar a posse de escravos, o Estado passa a tratar todos segundo a prática prevista pela existência simbólica daquela categoria.”[12] Mas seriam “todos” mesmo?
Por outro lado, a versão oficial da Revolta tende a diminuir o número de mortes, possivelmente em milhares, ao desviar nossa atenção para a desorganização de um golpe militar fracassado que se preparava na Praia Vermelha. Como bem mostra Abdias de Nascimento, existem justamente equívocos quanto aos números registrados referentes aos negros brasileiros nas primeiras décadas do século vinte, fazendo com que pareçam ser uma minoria no Rio de Janeiro.[13] Mas considerar a atrocidade sofrida pelo povo negro nesta revolta como apenas relativa a uma versão da história que busca ser contada pelos derrotados equivaleria a um segundo recobrimento conceitual. Seria encobrir pela ignorância um crime contra a humanidade, plausivelmente sendo uma pedra a mais que fortalece, no mesmo gesto, uma filosofia política constituída pela legitimação do racismo estrutural [14]. Se não deseja manter-se no campo da ideologia, a filosofia política deve contar os detalhes desta história e deixar-se permear por eles, tornando-se verdadeira ciência. Talvez não seja a perspectiva das vítimas, esta possivelmente silenciada para sempre, mas visa ao menos, pela arte rigorosa da crítica, a estabelecer a verdade – que não tem “versão”.
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Contar criticamente implica a rever os parâmetros subjacentes à formação de um discurso teórico que possua pretensões científicas de verificação e validação. Deve-se entender a filosofia política como uma teoria que apresenta a política na forma de um espaço em que se cria verdades, e não como um campo subserviente à mentira e ao oportunismo dos famintos pelo poder. A partir deste espaço, podemos constatar que há apenas três orientações possíveis em filosofia política. Três orientações em que as duas primeiras se relacionam, e a terceira lhes é irredutível. Três orientações, mas com seus duplos.
Com a denominação destas orientações visaremos ressaltar os elementos da produção discursiva da filosofia política e seus pressupostos, ao invés de partimos da suposição de invariáveis como a natureza humana, as lutas pelo poder e a inevitabilidade da desigualdade. Consideremos, neste sentido, que o estruturalismo francês produziu importantes desconstruções acerca do conceito de soberano, principalmente a partir da história das línguas e dos mitos indo-europeus, africanos e ameríndios. A análise estrutural esforçou-se em salientar que a transformação das sociedades feudais em sociedades de mercado alterou o locus formador do Estado. Onde outrora relacionavam-se duas castas, uma militar e outra clerical, através de uma ordem jurídica que legitimava o poder pelo direito divino (que também se autorizava o monopólio da possessão de terras), a ordem moderna viera justificar a detenção da propriedade privada por grupos que compunham um terceiro componente, a massa dos trabalhadores. Conforme esta progressão histórica, fora a laicização do sistema jurídico o que reformulara o Estado a partir das instâncias representacionais da vontade do povo. Sua unidade social passaria a ser assegurada por uma categoria estruturante, a do soberano. Esta nova estrutura tornava obsoleto o antigo processo de legitimação advindo de uma lei divina e moral. Ergue-se então o espírito da liberdade que percorrerá civilizações e continentes num reposicionamento do poder supremo que se ajustará cada vez mais ao próprio ritmo circulatório dos mercados.
O problema desta modelização do Estado que parte de sua laicização sempre foi a concentração teórica investida no conceito do soberano. A estrutura da laicidade política se diferencia justamente do modelo trifuncional do Estado feudal pela maneira em que um texto codificado, a constituição formal, institui a nova ordem e as novas possibilidades comerciais. Submissa ao soberano, a filosofia política por muito tempo aparentou-se à sacralização da lei. As mutações nos alicerces teóricos de suas orientações eram incorporadas principalmente como efeitos de ideologia. No fundo, o que a doutrina da razão do Estado continuava a ocultar pelos conceitos de soberano e de soberania era a força discursiva limitada do contrato social em preservar a possibilidade de que cada cidadão pudesse “assegurar o direito de ganhar a vida”[15].
Ao sustentar que a filosofia política se limita a três orientações, o foco no conceito de soberano se mostra ainda aquém da transparência esperada por este campo. A força estruturante de um Estado em meio a um espaço público em movimento contínuo, entre ampliação e retração, é assegurada pela transparência proporcionada pelo discurso autorreferencial, um discurso que mescla criação e obediência. Por isso, no objetivo de realizar esta tipologia de orientações na filosofia política, cabe derivá–la do conceito de constituição, de constitucionalidade e de constitucionalismo.
As teorias do contrato social se esforçaram em desvincular o direito natural e a posição do soberano de sua antiga fusão em uma figura única. O parâmetro da constituição veio gradualmente salientar a participação coletiva do público na construção e na manutenção do Estado administrativo-social. Portanto, por constituição, entende-se uma entidade discursiva que assenta leis, direitos e normas cujas formas se alteram em função das caraterísticas históricas e religiosas de uma classe ou de uma cultura política especifica. No âmbito da teoria, o constitucionalismo visa, antes de mais nada, à coerência interna de uma lógica que organiza os processos e dispõe os parâmetros que a tornam concreta. Em sua efetuação, o constitucionalismo estabelece a translação entre ideias e sua extensão em uma entidade referencial, a lei fundamental.
Vista por este prisma, a filosofia política organiza suas capacidades de análise, de interpretação, de normatividade e de prescrição sempre a partir dos limites da discursividade. Em outras palavras, seu centro teórico dá-se melhor a ver ao ser pensado a partir de seus limites. Consequentemente, o centro se torna o excedente apagador destes limites, aquilo que em suas primeiras manifestações teóricas já pressiona a filosofia política a se deixar ser seduzida pelo poder, ao invés de se preocupar com as condições de inclusão universal da cidadania na distribuição das riquezas. A vantagem de vislumbrar a ciência política pela perspectiva dos seus parâmetros é vê-la enquanto processo continuamente constituinte.
A primeira orientação da filosofia política, reconhecível por ter se transformado em projetos concretos de magna carta, declarações de independência ou as mais variadas promulgações universais dos direitos dos homens ou das mulheres, pode ser denominada a orientação constitucional enquanto tal. Se coubesse atribuí-la um símbolo, a lâmpada poderia resumir a força combinada entre natureza e cultura implicada no descobrimento de seu modelo técnico. Alguns séculos antes, Thomas Hobbes não afirmava outra coisa da proeza técnica de sua nova “ciência política”, à qual aplicava os conhecimentos científicos mais avançados com o objetivo de criar um Estado ritmado pelo diapasão de um “homem artificial”.[16]
Isto posto, o Leviatã de Hobbes já demonstra a complexidade da criação conceitual aplicada às vivências concretas. Embasada no hipotético pretexto de salvar os animais humanos de sua própria destruição, quando estes haviam se transformado em bandos de assassinos psicopáticos por decorrência da escassez de bens e de uma alma mal executada pelo criador, a tão difamada doutrina política do Leviatã é uma joia de criação conceptual. Primeiro, Hobbes preserva na ordem jurídica do Estado o que a Natureza cria de perfeito, as leis naturais. As leis iniciais proporcionam explicitamente a paz e a condução responsável. Segundo, Hobbes sutilmente submete a concentração de poderes em um único indivíduo, no caso o soberano, à rede de tensões, afetos e interrelações entre os “súditos”, sem as quais na realidade a soberania inexiste enquanto corpo político. De fato, os súditos abdicaram de seus “direitos”, mas, estes sendo “naturais”, são tão malformados quanto a própria alma. Por consequência um animal humano só terá a ganhar ao se juntar à entidade materialista do “Estado civil”, o “homem artificial” do Leviatã. Por fim, a extensão do poder soberano é limitada moralmente pela lei cívica na medida exata em que concede ainda ao súdito um direito de resistir: caso a autoridade do Estado coloque sua vida em risco. É claro que não há Estado autoritário que reconheça a legitimidade de tal direito, e ainda menos um ditador que o respeitaria.
A cor que representa a primeira orientação da filosofia política, a constitucional, é o branco. Evoca desta forma a lâmpada, com sua luz, sua riqueza e transparência, como resultado do gênio humano que faz do Estado uma estrutura mantida coesa pelos cidadãos, e não mais pelo corpo divino do rei.
O oposto desta não pode ser considerado uma orientação em si. Nas três orientações, as deformações da referência primeira não são suficientes para torná-las distintas. No caso da destruição dos princípios de uma filosofia política constitucional, como no caso da Revolta da Vacina, não haverá outro modelo, apenas uma mutação destrutiva do primeiro. Ao considerar esta possibilidade, se aponta a transformação da filosofia em engenharia social quando uma filosofia política está literalmente desvirtuada de todas as criações possíveis advindas das comunidades humanas com suas artes e suas técnicas. Sendo assim, a virtude do cidadão denota a condução ética ligada a um princípio de excelência, promovida pela integração da coletividade no trabalho participativo do conhecimento e da ciência. Portanto, um Estado é justo, em primeiro lugar, na medida em que é fruto da criatividade coletiva, e não tanto pelo princípio subjacente que considera como dever supremo a realização da liberdade no âmbito da justiça.
O que limita então a filosofia política a optar por esta extensão de criatividade coletiva? Uma das respostas poderia ser a natureza mesma da sua composição discursiva. Décadas depois do mapeamento da natureza e do potencial humano no Leviatã, as teorias do contrato social lutavam para liberar o campo de análise da psicologia, reservando-se o das relações políticas e jurídicas. No entanto, neste movimento de filtragem discursiva, um recurso empírico fazia-se necessário. No século dezenove, o da sua consagração, a história veio a cumprir o que o afastamento da psicologia deixava pendente. A inserção da história no psicologismo jurídico da orientação constitucional não criava uma nova ciência, mas arriscava contornar a aplicabilidade das suas prescrições. Em reação, a filosofia política reforçava o dispositivo jurídico e administrativo, vendo finalmente com suspeita as lições que a história poderia lhe trazer.
Em consequência desta disputa com a história, uma segunda orientação na filosofia política passou a reconhecer a necessidade de integrar os setores populares. E ela usará o expediente da justiça para determinar as condições de sua inclusão. Neste movimento, é menos a história que será cobiçada do que a economia. No início do século vinte, o exemplo da criação de um imposto sobre a renda nos Estados-Unidos representara um verdadeiro salto para uma comunidade que se dá os meios de realizar seus objetivos sociais. O imposto sobre a renda é um programa revolucionário, pois, até a primeira guerra mundial, a arrecadação de impostos tinha por objetivo financiar guerras.[17] Poderia parecer irônico que uma reforma tributária progressiva encontre hoje tanta oposição hoje justamente quando a sociedade precisa que o Estado aumente suas receitas. Mas esta oposição é simplesmente proporcional à medida da concentração de riqueza ocorrida nas últimas décadas, quando voltara a plutocracia na forma do capitalismo improdutivo, um modo de governo dos ricos apenas para os ricos[18].
O sistema tributário progressivo é a principal reforma que deve ser pautada pela filosofia política no Brasil e de modo geral nos países democráticos, mediante o reinvestimento dos fundos arrecadados na sociedade – e não nos bancos e nas instituições financeiras. Os benefícios de que gozariam indiretamente os salários até eliminaria a necessidade de uma renda básica mínima. Determinar o valor justo desta renda depende de qualquer forma das taxas de inflação, de impostos sobre o consumo e do custo geral de vida. Se a sociedade ainda deseja se dar os meios de sobreviver e a filosofia política os de demonstrar como sua extensão concreta não implica a exclusão de prescrições que visam uma aceitação universal, não há outra opção que achatar a curva da concentração da riqueza, a praga econômica de nosso tempo.
Portanto, no que se refere à sua composição atual, já surge o problema de integrar as dimensões discursivas que se tornam conflitantes para com o modelo constitucional que a filosofia política tem desenvolvido. Embora constituições em que são explicitadas as leis fundamentais de uma estrutura administrativa e política já fizessem parte do espírito revolucionário do direito natural e do contrato social, sempre foi inegável a imperfeição das constituições. Isto se demonstra pela determinação de uma manobra reparadora que se manifesta na história mais recente deste campo da filosofia. A concretização desta margem constituiu um recurso extralegal, especificamente voltado a um espaço ético de reivindicação de direitos. Por vezes, as constituições modernas seguiram este caminho, o reconhecendo e ativando. Que se trate de uma revolução no plano do pensamento, de uma revolução que ultrapassa o espírito do secularismo ao integrá-lo nos termos do reconhecimento das injustiças de ordem constitucional é o que se observa propriamente na segunda orientação da filosofia política, a orientação emendária ou extra-constitucional. Trata-se, pois, de um aperfeiçoamento, de um reconhecimento, pelo Estado, populações reais conclamando que seus direitos também sejam escritos.
Desde a primeira emenda na Constituição dos EUA, até a trágica decima-terceira[19], a margem proporcionada pelas emendas constitucionais constitui a membrana pela qual permeia o fluxo da vida real – nas constituições e nas teorias que as sustentam. Quando votadas, a filosofia política prova que não falha em integrar as lutas sociais em seu próprio campo. A verdade jurídica consagrada em tais modificações sempre tem a potência legislativa do seu lado, se esta verdade for reconhecida por boas razões. Por isso, seu objeto simbólico deve ser a fonte da clareza de uma sociedade real, ao invés de uma universalidade sonhada ou um interesse privado camuflado. O objeto simbólico da segunda orientação da filosofia política encontra o longo fluxo dos rios, sua cor destacando um azul profundo.
Porém, a estrutura discursiva emendária da segunda orientação da filosofia política não escapa à desestabilização. Arrisca naufragar assim que são permitidas interlocuções com a ciência social da economia, que é a que compensa as lacunas conceituais com objetivos concretos. As orientações constitucional e extra-constitucional da filosofia política afirmam ser possível transcender desigualdades econômicas em nome de princípios morais superiores, mas rendem-se aos obstáculos mal-entendidos dos projetos de meio-termo, que insistem em postular que a igualdade econômica transformaria os indivíduos em clones uns dos outros.
Pela estrutura discursiva constitucional da filosofia política, uma presença maior da economia piora ainda mais sua coerência interna. Quando cercada por uma sequência histórica da economia, na qual o sistema produz não apenas desigualdade, mas miséria e sofrimento psicoafetivo, a filosofia política pode vir a se confrontar novamente aos constrangimentos determinados por seus próprios parâmetros. Acaba então conduzindo, com argumentos racionais, sujeitos oprimidos a se submeterem às condições de empobrecimento.
No caso da segunda orientação política, o limite da inclusão do discurso econômico no seu campo não é impossível, nem indesejado. A lógica das emendas constitucionais, em bom número de democracias, produziu não apenas resultados concretos, mas éticos. O fato de que milhares de pessoas saíram às ruas para protestar contra o racismo e a violência policial é sem dúvida uma contingência, mesmo se ocorre durante uma pandemia. Porém, seu alvo é o mesmo que visa o responsável pela dimensão precária da gestão, ou falta dela, da pandemia.
A raiz da violência policial cometida em graus diferentes no Brasil ou nos EUA incarna o duplo desta segunda orientação. A política produz, além do medo coletivo vivido nas comunidades brasileiras e nos neighborhoods estadunidense, o apagamento dos meios de sobrevivência dos afrodescendentes dos dois países. Na sequência da Revolta da Vacina, a polícia retoma o legado escravocrata institucionalizado no modo de marcar pessoas pela cor da pele, e reforça um sistema de exclusão social proporcionada por um racismo estrutural. Talvez nenhum acontecimento marca melhor as limitações e o desamparo revelados pela filosofia política extra-constitucional que justamente a parcialidade com a qual se conta o terror exercido pelo Estado federal durante a Revolta da Vacina.
Dar-se a sensibilidade para entender a plena implicação deste terror necessita ainda a abertura crítica que reservamos à terceira orientação da filosofia política. O duplo da segunda orientação é, sem a menor dúvida, o regime policial repressivo, legitimado por uma casta de intelectuais, advogados e tecnocratas, os profissionais do Estado. Em seus desdobramentos, este duplo da filosofia política extra-constitucional costuma apresentar argumentos que favorecem a desigualdade entre classes, gêneros e etnias. Sua mera existência ressalta o motivo pelo qual não há como ultrapassar a constitucionalidade institucional. Oculta tipicamente os níveis subliminares de preconceitos classistas e raciais a partir dos quais justificam a crueldade sofrida pelos setores pobres da população – e pelos mais pobres ainda – miseráveis despojados mesmo do acesso a serviços sociais. Historicamente, isto passava pela restrição ao voto, em virtude de cláusulas que excluíam do processo político pessoas analfabetas, o que era mais uma segunda exclusão, após a de não ter desfrutado de uma educação, algo deliberadamente arquitetado pelo poder central.
Nos casos em que o conflito dos discursos arrisca proporcionar uma mutação da unidade do campo da filosofia política, identifica-se a terceira orientação, a infraconstitucional. Sua cor, como sua luz, é vermelha. Seu objeto, uma técnica complexa, a mais avançada no domínio organizacional, cuja aplicação visa cortar e recompor por uma espectroscopia o tempo perdido, ou quiçá detectar o calor contundente da febre sintomática da Covid-19.
Tal como a “luz” infravermelha, a orientação infraconstitucional não se dá a perceber integralmente. Análoga a ela, a orientação infraconstitucional carrega em si informações importantes sobre sua forma organizacional, através de movimentos espectroscópicos que a estruturam perante a ameaça de sua redução ou apagamento. Mas estas informações não podem ser deduzidas a partir da visibilidade, uma vez que a filosofia política não faz apenas integrar discursos científicos que a levariam à instabilidade. Por esta configuração, ela pode surgir como ciência fundamental demonstrável por produzir as verdades que aproximam o pensamento ao real, verdades eticamente justificadas pelos meios de sua prática organizacional.
Desvios ao pensamento infraconstitucional aparecem quando este se deixa enganar pela ideia de que a criação do espaço político comum se encontra apenas no futuro, no “poder ser” de um “por-vir”. Filósofas da política como Angela Davis mostram que, sem integrar a história crítica das sociedades escravocratas, o futuro literalmente não consegue chegar. A filosofia infravermelha tem um futuro a consertar.
Sem abraçar o antirracismo, nem argumentos pós-convencionais evitam que os grilhões permanecem intactos. Na segunda orientação, a versatilidade sofisticada da “Realpolitik” adorna o seu aparato teórico com a convicção de que a racionalidade que subjaz à integração de emendas a uma constituição se sustenta pela conciliação de discursos. Não infrequentemente, as emendas naufragam em consequência da inércia de sua própria racionalidade científica. Afinal, a orientação emendária funciona na medida em que os discursos conexos à filosofia política consertam, na forma de direitos, as instâncias excludentes das opressões sofridas pelas massas.
A terceira orientação surge realmente em uma outra fenomenalidade, não menos estruturante da filosofia política. Ela completa o que a interseccionalidade desestruturada de um discurso anteriormente excluído da ciência. Quando o termômetro infravermelho identifica a febre subjacente a uma sociedade dramaticamente desigual, é raro que não aponte à noção de propriedade privada. A sacralização da propriedade privada pôde se realizar apenas com a apropriação de indivíduos do continente africano, destinado a serem vendidos, reduzidos à mercadoria na vertente escravocrata de um sistema capitalista além mesmo das suas contradições conduzidas no nível da produção industrial. O colonialismo europeu era isto, um tráfego comercial de seres e de vidas destinados a serem transformados em bens que extraíam os recursos naturais dos quais a indústria gloriosa de países avançados precisava. Por isto, uma sentença vem afirmar a orientação infravermelha em tempos de pandemia do Corona Vírus: “Neste momento em que se discute como a gente pode pensar numa nova estrutura democrática para a sociedade, não existe democracia sem o combate ao racismo”. [20]
Hoje, a luta contra a privatização dos comuns passa também pela luta contra a violência às mulheres, particularmente as mulheres de cor, amefricanas, que permanecem ainda as mais vulneráveis a sofrer abusos sexuais. Seus espectros vivos se projetam na conivência da falsa perfectibilidade racional de uma filosofia política constitucional. Como escrevia Davis ao refletir sobre as condições e as experiências de mulheres escravizadas nos EUA: “o estupro, na verdade, era uma expressão ostensiva do domínio econômico do proprietário e do controle do feitor sobre as mulheres negras na condição de trabalhadoras.”[21] Integrar o estupro e a escravidão por uma espectroscopia a partir do preto faz surgir um vermelho cuja voz não pode mais calar a urgência das sentenças “Black Lives Matter” e “Parem de nos matar”.
A orientação infraconstitucional aberta pela dimensão criativa da teoria equivale a assinalar o surgimento de novas subjetividades situadas além da lei e em confronto com o Estado de direito, que lhes exclui. Mas se a orientação emendária-azul acaba integrando pontualmente perspectivas anteriormente excluídas, só a força da orientação infravermelha pode derrubar a cientificidade do tradicional discurso político. À vista disso, quando conseguem se apresentar como opção concreta, as instituições vigentes tentam justificar seu caráter estético e ficcional, distorcendo sua verdade por meio de um ideal de cientificidade que goza melhor quando convive com ideologias obscuras.
Considerada pelas duas primeiras orientações na filosofia política, a pandemia inegavelmente pegou as ciências humanas despreparadas. A ruptura que se constata entre a formação filosófica e a história é tão profunda que não se pode meramente lamentar que fora criada por uma política nacional de educação superior. Repentinamente a pandemia surgiu para novamente colocar a natureza e seus moradores frente à ordem constitucional e aos discursos que a reproduzem. Se a ciência promove medidas para controlar a pandemia, ela continua submissa aos interesses da classe financeira de que haja efetivamente uma calamidade pública produzida pela doença.
No final da década de 1990, Susan George, cientista política e fundadora do grupo ATTAC, usou os recursos da ficção para integrar o que a filosofia política constitucional reconhece apenas como teorias conspiratórias. No Lugano Report, ela detalhava os planos de um “grupo de trabalho”, composto de empresários e políticos da elite mundial. Suas propostas eram de enxugar passivamente a população humana, atendendo aos fins de um capitalismo agonizante que busca sobreviver às crises das quais ele mesmo é responsável e sobretudo à destruição do trabalho. Nas mãos da elite, as pandemias representam uma arma perfeita. Onde George errava era apenas sua convicção de que a nova onda pandêmica seria desencadeada por supermicróbios, gerados pelo uso mundialmente desfreado de antibióticos.[22]
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Na época da composição do relatório fictício de George, não havia a possibilidade do preenchimento das margens sociais por uma experiência de política infravermelha concreta e abrangente. Pressões e restrições alimentadas pela mídia corporativista transnacional sufocavam toda proposta de uma outra economia que tivesse por base a atualização da hipótese comunista. Destarte, ocultavam a frase chave do penúltimo parágrafo do Manifesto comunista, em que Marx e Engels juram trabalhar sem “dissimular suas visões e suas intenções”, junto de seus pares, “em toda parte pela união e pelo entendimento dos partidos democráticos de todos os países”[23]. Precisou meio século para que um sistema econômico e político comunista pudesse adquirir um nível de sofisticação técnico e organizacional capaz de desmentir a tese da escassez dos bens ao erradicar a pobreza. A China passou de um repositório sem limites de mão de obra barata, pronta a acomodar as deslocalizações da globalização, para realizar a mais sofisticada organização econômica de bem-estar social do século XXI, um “socialismo de mercado”. Prova está em sua maneira de conter o contágio do Sars-CoV-2 e tratar dos casos de Covid-19. Depois do colapso de 2008 e a recessão que se seguiu, a China já havia salvo as economias e os mercados financeiros do Ocidente através de suas gigantescas obras de infraestrutura.[24] Na figura promissora em que se destaca que um bilhão de pessoas saíram da pobreza nesta última década, setenta por cento deles são chineses.[25] A existência da China faz com que, à luz da pandemia e das lutas antirracistas desencadeadas nas democracias liberais em prol à uma concentração de riqueza sem precedentes, a filosofia política se defronta à necessidade de uma revisão estrutural que esteja no mínimo à altura das realizações deste país milenário. O desafio da filosofia política infraconstitucional é o de reconhecer o sintoma do novo, desviando-se da cegueira da luz branca da liberdade para sentir o calor infravermelho dos passos rumo à igualdade.
Para compor a simetria, a terceira orientação da filosofia política confronta também um duplo. Vemos como a normatização esmagadora delimita a primeira orientação constitucional da filosofia política e como a repressão aterrorizante pulveriza a segunda orientação, a extra-constitucional. A terceira orientação, por ser infraconstitucional, contém um contrário totalizante, porventura totalitário, mas apenas em aparência. Menos discursivo ainda que os duplos das duas primeiras orientações, o seu contrário é opaco e brutal. Nem a filosofia política constitucional nem a extra-constitucional vislumbra inserir em seus modelos as dezenas de milhares de mortos pela pandemia no Brasil. Apenas a terceira orientação concebe relacionar – talvez para melhor tentar punir – estas mortes com o racismo e a mais vulgar discriminação de classe.
O duplo da terceira orientação é, portanto, a morte. Sua efetivação dá-se na brutalidade do assassinato, da execução extrajudicial ou do genocídio. Assim está posicionado o futuro da filosofia política, defronte ao cano da arma racista das pandemias, como está, aliás, o futuro de todos nós.
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[1] Para tais dados, apoiamo-nos na pesquisa realizada por Nicolau Sevcenko em A Revolta da Vacina (2013), cuja primeira edição foi lançada em 1983.
[2] Sevcenko reconhece claramente o caráter anônimo da insurreição, subtraída tanto da tentativa de liderança da revolta pela Liga contra a Lei da Vacina Obrigatória quanto pelos governos federais e municipais. “Para os amotinados, não se tratava de selecionar líderes ou plataformas, mas, mais crucialmente, de lutar por um mínimo de respeito à sua condição de seres humanos.” Sevcenko, p. 17.
[3] Sevcenko transmite a perspectiva da hegemonia paulista sobre o porto do Rio: “ele apresentava ainda uma estrutura antiquada e restrita, absolutamente incompatível com a sua condição de polo energético e catalisador de toda a atividade econômica nacional. […] As ruas da cidade ainda eram vielas coloniais, estreitas, tortuosas, escuras, com declives acentuadíssimos.” Sevcenko, p. 35.
[4] Pimenta, 2018, p. 196.
[5] De acordo com Sevcenko, os poderes alocados ao médico Oswaldo Cruz, foram de caráter ditatorial pois lhe permitiam “invadir, vistoriar, fiscalizar e demolir casas e construções. [A lei] estabelece, ainda, um foro próprio, dotado de um juiz especialmente nomeado para dirimir as questões e dobrar as resistências. Ficam vedados os recursos à justiça comum.” (p. 42-43)
[6] Sevcenko, 2013, p. 31.
[7] Citando uma descrição de Lima Barreto, Sevcenko afirma que “o fato é que quando a revolta irrompe, não tem partido, não tem plataforma, nem objetivos explícitos.” (p. 54).
[8] Ao denominar a Revolta o “último motim urbano clássico do Rio de Janeiro” (p. 47), Sevcenko se aproxima, mas não se rende à evidencia, de uma relação estrutural e simbólica entre as duas revoltas. Ao comentar o interesse em Paris pelo então prefeito da cidade, o engenheiro Pereira Passos, o historiador se rende ao sonho do engenheiro, mesmo que só por efeitos retóricos: “As ruelas estreitas e o calçamento de pedras constituíram o cenário imprescindível aos vários motins, revoltas e Comunas de Paris –, os planejadores urbanos logo o perceberam. As avenidas amplas e asfaltadas tornavam as barricadas praticamente inviáveis e davam total liberdade de ação à força policial.” (p. 47) O fato é que a Commune de 1871 não se incomodava com as famosas aberturas dos boulevards Hausmanianos e foi a maior e mais bem sucedida revolta popular na França, não obstante seu fim trágico. Ao condenar com paixão o autoritarismo e a repressão violenta dos cariocas pelo governo de Rodrigues Alves, Sevcenko não parece perceber o caráter genocida do uso de todos os ramos das forças armadas contra os bairros da região portuária, nem especificamente a cor dos seus moradores.
[9] Ministério da Saúde, Centro cultural da saúde: “Revolta da vacina”. < http://www.ccms.saude.gov.br/revolta/revolta2.html>. Consultado em 1 de junho de 2020.
[10] O mais perto que Sevcenko chegara a distinguir as matizes étnicas ou da raça está na afirmação de que “as vítimas são fáceis de identificar: toda a multidão de humildes, dos mais variados matizes étnicos, que constituíam a massa trabalhadora, os desempregados, os subempregados e os aflitos de toda espécie.” (p. 49)
[11] Ibid., p. 62.
[12] Ibid., p. 70.
[13] Nascimento, 1977, pp. 69 ff.
[14] Almeida, 2019.
[15] A quarta das treze “linhas de ação” proposta pelo economista, Ladislow Dowbor, em anexo de A Era do capitalismo improdutivo. Dowbor, 2017, p. 282.
[16] “Do mesmo modo que tantas outras coisas, a natureza (a arte mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é imitada pela arte dos homens também nisto: que lhe é possível fazer um animal artificial.” Hobbes, Leviatã, Introdução.
[17] Piketty (2019); Saes e Zucman (2019).
[18] Dowbor (2017).
[19] Em duas seções, a Emenda XIII afirma a seguinte: “1. Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado; 2. O Congresso terá competência para fazer executar este artigo por meio das leis necessárias.” Pela excepcionalidade, e em todas as letras, a emenda legaliza o trabalho escravo para pessoas condenadas pela justiça, o que, de acordo com Angela Davis, proporcionou o desenvolvimento de um complexo industrial prisional (2003). Ver Duvernay (2016).
[20] Eugênio Lima, fundador do Legítima Defesa e Frente 3 de Fevereiro. El País Brasil, 14 de junho de 2020. < https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-14/nao-se-pode-pensar-a-democracia-real-no-brasil-se-o-racismo-nao-for-um-ponto-central.html%E2%80%9CN%C3%A3o?fbclid=IwAR0x6wUsDNWtM-ZSLLqiJmfIsJNWP88LwVWfY8RPzus46Qx5TI59LVaHSlo>.
[21] Davis, 2016, p. 33.
[22] George, 1999.
[23] Marx e Engels, 1998 [1848], p. 37.
[24] Jabbour, Dantas E Espíndola, 2020.
[25] Dowbor, 2017, p. 150 (citando várias fontes.)