RUAS FORA DE CONTROLE

Carmem Gadelha

Professora Associada: Curso de Direção Teatral  e Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (Escola de Comunicação/UFRJ)

Uma entrevista de Gilles Deleuze a António Negri (Controle e devir) e um pequeno e seminal texto (Post-scriptum sobre as sociedades de controle) acabam de fazer trinta anos de sua primeira publicação, na coletânea Pourparlers, 1972-1990 (Minuit, Paris, 1990); no Brasil, Conversações (DELEUZE, 1992). Quero, aqui, relembrá-los; tornaram-se clássicos, sem serem, de modo algum, monumentos. Por isso mesmo (e muito mais), mantêm não apenas sua força afirmativa, mas, principalmente, a capacidade de indagar sobre nosso presente; tanto aquele que se estende desde esses trinta anos, como o que hoje nos acossa. A alegria da memória é poder reviver o impacto causado em mim por aquelas palavras, aquelas ideias, aqueles modos de dizer. Embora eu não me tenha tornado especialista em Deleuze, jamais deixei de tê-lo num jogo de proximidade e afastamento, um namoro que quer manter o frescor do primeiro encontro. Concedo-me a simplicidade da tarefa de retomar alguns temas dali extraídos, porque imagino ser a filosofia um dizer da própria vida, ali onde o pensamento pressiona (a)o agir. Peço, portanto, licença para tratar apenas de associações afetivas, as lembranças impondo-se ao presente, o presente recuando para pensar-se e indagar futuros. Menos que um ensaio, parto de queridas lembranças para traçar apontamentos aos quais comparecem outros textos e autores. Pode tratar-se também de uma crônica, no seu diálogo com o tempo atual.

Olho as ruas de domingo, 7 de junho último. Vejo-as pelas pequenas e grandes janelas virtuais abertas por imagens e narrativas em meu celular, o computador, a TV. Sou assaltada pelo espanto, o medo, a expectativa. Quem foi à rua o fez num ato de suprema coragem. A todo momento vem até mim a memória de outras ruas, outras lutas – na confluência de polis, política, poética. Então me lembro de Deleuze e seus dois pequenos textos, tão sucintos e tão largos. Singulares.

Está entre as palavras aquela que se refere ao Intempestivo, na diferença devir/história, mas sem oposição entre o eterno e o passageiro. Aí se dá o Acontecimento, efetuado num estado de coisas, porém carregando consigo um devir que vai muito além. Ele escapa à história para permanecer como potência do acontecer. A história apenas comparece enquanto conjunto de condições dadas para que algo seja efetuado. Assim evitamos a indeterminação, podendo dizer que algo se deu, com tais e tais contornos. Por outro lado, a história desvia-se ou rasga em seu ventre uma fenda para que se crie algo inédito. É então que o Intempestivo se encontra com o Intolerável.

Temo estar repetindo o que muitos já disseram. É que algo intempestivo passa por mim e me comove, seja turbilhão ou leve sopro. Algo que vi em uma linha, a propósito de Primo Levi, sobre o devir revolucionário – “o único que pode conjurar a vergonha ou responder ao intolerável” (Idem, p. 211).

A meu ver, é neste desvão (nada impede seja ele sutil) que se instala o trágico.

Penso na expansão permanente e inexorável do capitalismo, no acirramento da exploração sem limites, no fim da demarcação das jornadas de trabalho, na escravidão e no abandono. Pergunto novamente sobre as ruas de domingo, cheias de jovens, mulheres, negros e brancos. Máquinas de guerra que não se definem por estar em guerra, mas por buscarem um modo de ocupar o espaço-tempo e torná-los outros, abrindo linhas de fuga. Assim como fazem os artistas. A divisão não está entre quem foi ou não à rua, conforme declara Guilherme Boulos, mas entre quem pode ou não cumprir sua quarentena; ou, ainda, a divisão se dá entre aceitar ou não os excessos da dominação.

As máquinas de guerra servem para pensarmos o racismo, por exemplo. Ele é comparável ao nazismo, porque pode produzir em nós a mesma “vergonha de ser homem”. Embora não diretamente responsáveis, “fomos todos manchados” – pelo nazismo tanto quanto pelo racismo. Não pudemos, antes nem agora, impedi-los.

Trágica vergonha do riso vulgar perante as piadinhas, as fakenews, o sadismo com que vemos todos os dias serem roubadas infâncias e esperanças. Equivale à vergonha o aprisionamento a uma história que já conhecemos e permitimos que incessantemente se repita. Tudo isso em nome de uma maioria que não é numérica, mas conforme a um modelo hegemônico – branco, europeu, heterossexual. A minoria é devir, processo que foge ao modelo – caso dos negros e das mulheres no Brasil, que são em número maior. Criando um modelo, a minoria pode alcançar ser majoritária; mas sua potência de minoria escapa ao modelo criado porque quer permanecer em devir.

Apela-se, com a arte, a um povo que está sempre por vir. Embora não possa criar esse povo, a arte abre e propõe espaços para resistir “à morte, à servidão, à vergonha” (idem, idem, p. 215). Penso que a cena de nossas ruas, no último domingo, carrega consigo o caráter de devir minoritário da arte. Algo se reencontra como criação poético-política de um povo por vir. Isto porque a sociedade de controle, com seu alto poder de dominação, não pode impedir as tomadas imprevistas de palavra. Já não nos confinamos em fábricas, escolas, prisões (Foucault). Mas ainda somos um tanto do que já não somos. Não somos ainda o que, no entanto, já nos tornamos, mesmo contrafeitos. Caminhamos cegamente e a passos largos para a derrubada da última árvore; para a educação à distância e de perene controle sobre o estudante e o professor. Liquidar a escola e precarizar o trabalho são os contornos apresentados agora pela história.

Certamente, não dependemos apenas de retomada de poder de palavra e produção de imagens. Isto fazemos incansavelmente, mas também sem escapar aos circuitos da repetição. Porém, trata-se de desviar a palavra, quebrá-la, criar com ela vácuos e interrupções para escapar ao controle. Sim, isto é desempenhado pelo teatro; e, sim, pela cena da rua. Um e outro agem num processo de produção subjetiva, tanto individual como coletiva, que escapa aos poderes constituídos e às falas dominantes, mesmo que venham a integrar novos poderes e saberes. São acontecimentos não explicáveis pelas circunstâncias onde se situam ou venham a se localizar. São instantes de subjetivação e oportunidades, no limite dentro/fora do sujeito, dentro/fora da história. É então que o Intempestivo se põe em ato, pressionando o pensamento e enfrentando seus perigos.

Para voltar a acreditar no mundo do qual fomos desapossados, é preciso escapar ao controle, mesmo que em um pequeno espaço-tempo. Criar um povo só pode ser na falha ou na dobra das coisas. Inventar um povo é aceitá-lo como devir, querê-lo incompleto, sonhá-lo indeterminado e transbordante de um possível modelo advindo da luta. Povo faltante e em falha. Diz Deleuze (1997), em outro pequeno texto de Crítica e clínica, que o excesso de completude e saúde é fascista.

O perigo da morte nas ruas (“de susto, de bala ou vício” ou, ainda, de COVID) me leva agora a Walter Benjamin (1984) e ao barroco: a morte é a mãe de todas as alegorias; elas proliferam imagens que remetem a algo outro, alcançando outros espaços, outros tempos, metáforas, paradoxos, metonímias. No último domingo, os corpos se deitaram no chão das ruas, como os mortos: Marielle, George Floyd, o menino Miguel, o adolescente João Pedro. O nome de cada um é o nome de todos. “Eu não consigo respirar” torna-se um lema, uma palavra de ordem pela qual nossos mortos se alegorizam e se tornam todos nós. Tomam os corpos e correm, desfilam, tropeçam.

O trauerspiel (espetáculo do luto), desfaz a proibição, seja pelo COVID, seja pelo fascismo, aos funerais. Alguns corpos importam mais que outros, mostra Judith Butler (2019). Negros, LGBT, pobres são quase inexistentes, de tão desimportantes. Mas, vidas negras, LGBT e pobres importam. E porque importam para a vida, requerem o luto. Não o luto midiático, que atua na confluência entre o vírus e o uso oportunista da pandemia para propósitos genocidas – claro, não inteiramente sem contar com o controle midiático-digital. Ou servindo-se abertamente dele, nos subterrâneos das redes sociais.

Ocorre que o luto (re)encontra na rua um espaço de compartilhamento e ressensibilização dos corpos, uns pelos outros, ali onde a presença é festa e contágio de solidariedade, desfazendo as divisões entre espaços de olhar e espaços de ver. Misturando o que estava separado, separando o que estava misturado, outra vez fazendo e desfazendo relações. Escapar, teatralmente, ao próprio dispositivo da casa de espetáculos; usar a rua como contradispositivo, na acepção de Agamben (2009); dar carne e visibilidade ao que importa, ver além do visível: são ações libertadoras da presença, ações libertadas por ela, no uso de palavras que vão além delas mesmas e se convertem em falas. Uma tal cena incita, entrecruza forças, amplia seu próprio alcance ao inventar uma obra de arte. Ela é feita de disjunções, (des)acordos, (des)conformidades, uma abundância de formas porque não dispõe de formas prescritas. A linguagem situa-se, então, além do que vimos, ouvimos, dizemos: ativação de forças de subjetivação.

O que está em jogo é a insurgência contra o Intolerável, na experiência de partilha do comum e do sensível (RANCIÈRE, 2012). Aí estão o teatro e a cena, barrocos ou trágicos, cuja maior personagem é, já dissemos, a morte: a que nos ronda e a que choramos e para a qual celebramos, cênica e coletivamente, um funeral. Coletivamente, como convém à arte, em sua íntima relação com a vida e a política. Somos presentes e co-presentes, na polis e no teatro, recortando e redefinindo lugares e relações. Com este espaço de presença, retomamos o tempo presente que nos foi sequestrado.

Na rua como no teatro, o que recuperamos, na encruzilhada dos tempos, é um gesto e uma voz de um povo por vir. Quero invocar o nômade e sua máquina de guerra (DELEUZE & GUATTARI, 2012). Ele ocupa um espaço do qual não quer tomar posse, metrificar, povoar com monumentos. O guerreiro nômade arremete contra o Estado, não para tomá-lo, mas para mudar-lhe as destinações. E se o Estado se apodera da máquina de guerra, seja para aniquilá-la ou para assimilá-la, jamais consegue fazê-lo totalmente. Aqui podemos comparar o palco à italiana, que simula ser liso, com o tecido produzido pelo tear. Nele, a coordenada de largura determina a trama feita com o cruzamento de fios. Máximo de estriamento que se vê também no palco, de sofisticada metrificação – o que o aproxima da arte clássica e de Estado, fingidores de harmonia e homogeneidade (SZANIECKI, 2007). O tecido nômade, por excelência, é o feltro, um aglomerado de fibras prensadas, sem centro ou direção. Há também o espaço liso do mar, maximamente metrificado pelas Navegações, mas também sempre restituído ao seu liso. Como o deserto e as geleiras.

Quero dizer que a cena da rua é feita de uma ocupação que trata o espaço exaustivamente estriado pelos poderes, de modo a fazê-lo parecer liso. Mas é em suas estrias e desvãos que o nômade Dionísio (o sempre estrangeiro onde quer que esteja, o sem-lugar) faz a sua aparição epidêmica. Em êxtase, ele salta e corre, desdenhando monumentos e outras marcas de dominação, furtando-se e resistindo aos poderes, para traçar roteiros fora do previsto e não determinados pelos saberes. Dionísio dança abraçado a Exu das Encruzilhadas.

Esse “fora” produzido pelas manifestações põe o controle em contato com o arcaico – um corpo crucificado pela rede ganha o asfalto e transmuta-se em guerreiro. Ouso dizer que talvez se pratique aí um ato de profanar a religião do capitalismo, dado por Agamben (2017) como improfanável. Pois a rua traz de volta o que foi usurpado ao uso comum e tornado sagrado. É que algo de poético se instala onde não é esperado.

REFERÊNCIAS:

Agamben, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, Editora Argos, 2009.

—-. Profanações. São Paulo, Boitempo, 2017.

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo, Editora Brasiliense, 1984.

BUTLER, Judith. Vida precária – os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2019.

DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992.

—-. Crítica e clínica. Rio de Janeiro, Editora 34, 1997.

—- & GUATTARI, Félix. Mil platôs. São Paulo, Editora 34, 2012, v. 5.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo, Editora 34, 2012.

SZANIECKI, Barbara. Estética da multidão. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2007.

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