Caminhoneiros, camponeses e a democracia brasileira

Patrícia Machado

PUC-Rio

I       

Plano 1. No canto da estrada, ocupado por uma fileira de caminhões, um grupo de manifestantes conversa e explica seus motivos para participar da greve. Falam em respeito pela classe dos caminhoneiros, pela busca de igualdade e pelo direito de exercer a sua cidadania. Um dos manifestantes, que carregava distintivos falsos da polícia federal presos na roupa, muda o tom do discurso. Com a voz exaltada, e certa dose de pretensão, critica a mídia, o governo (na época do Presidente Michel Temer) e substitui a preocupação com as conquistas da classe pela crença na responsabilidade dos grevistas com o futuro político do país: “é hora de ver o que a gente pode fazer com isso aí, o Brasil vai sair vitorioso, vamos honrar aquela bandeira”. Sem explicar quais seriam os termos de uma vitória para os brasileiros, o caminhoneiro solta o seguinte bordão: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Corta.

Plano 2. Observamos um carro parado cujo porta-malas está ocupado com caixas de som. Uma bandeira do Brasil, pendurada na janela, balança com a força do vento. Do alto falante sai o hino que celebra a declaração da Independência do país em relação a Portugal, feita por D. Pedro I, em 1822. Ao espectador, chama a atenção o interesse por esse hino pouco conhecido, já que não existe no Brasil o hábito de executá-lo em solenidades oficiais e civis, como acontece com o hino nacional. Cantado nas ruas a partir do entusiasmo da época, o hino foi perdendo força à medida em que o monarca perdia prestígio. O trecho destacado na montagem, no entanto, carrega semelhanças e parece uma continuação da fala do caminhoneiro do plano anterior: “Ou ficar pátria livre ou morrer pelo Brasil”. Corta.

Cena 3: A câmera registra a frente do caminhão vazio e o enquadramento destaca o para-brisa. Nele, estão colados dois adesivos. No primeiro, com letras garrafais, lemos “Mateus e Samuel, presente de Deus”. Possivelmente, essa é uma referência aos filhos e à crença religiosa do motorista. Para quem enfrenta cotidianamente os perigos nas estradas do Brasil, o combo fé e família estampado no caminhão é algo muito comum. O outro adesivo, no entanto, foge à regra das frases padrão. É pedido ali o fim da corrupção e – em letras ainda maiores– Intervenção Militar já! Corta.

Os três planos compõem uma das primeiras sequências do filme Bloqueio, de Quentin Delaroche e Victoria Álvarez. Em maio de 2018, quando uma greve de caminhoneiros – que durou dez dias–, interrompeu mais de quinhentas estradas de todo Brasil, os documentaristas decidiram filmar o acontecimento. No sétimo dia da greve, foram para Seropédica, no Rio de Janeiro, e registraram imagens e falas que deixavam claro que os motivos da paralização iam além do aumento do preço do diesel. A sequência descrita acima traz elementos visuais e sonoros que vão se repetir, de formas diferentes, ao longo do documentário: a crítica às instituições, a descrença na democracia, a evocação da religiosidade, a retomada de símbolos patrióticos e os pedidos insistentes por uma intervenção dos militares no poder.

O material registrado pelos cineastas sugere o investimento em um discurso compartilhado por uma maioria entre os grevistas e anuncia o que viria a acontecer no Brasil em um futuro próximo. Cinco meses depois da greve, Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil defendendo essas mesmas pautas. O candidato exibiu durante toda a campanha símbolos que uniam a bandeira brasileira à religiosidade, como vimos nas imagens da greve.  O bordão anunciado pelo caminhoneiro no filme é até hoje o lema oficial do Presidente. Com pouco mais de um ano de governo, pressionado pela pandemia do coronavírus, Bolsonaro também incentivou os seguidores a afrontar a Constituição e encorajou manifestações públicas e em redes sociais em que eram pedidos o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, além de um novo AI-5 (chamamos atenção para o fato de que, em julho de 2020, já são 6 mil militares ocupando cargos comissionados no governo, segundo o Tribunal de Contas da União).

II       

Apesar de não admitir, Jair Bolsonaro critica as instituições democráticas porque defende um governo de viés autoritário. Apesar de eleito pelo voto, a lógica bolsonarista é a identificar a democracia com um sistema político que precisa ser destruído. Essa é a tese do cientista político Marcos Nobre, que chama de parasitismo antissistema o projeto de governo antidemocrático via eleitoral  em que “o sistema é declarado derrotado e o novo governo se institui como autêntica representação vindoura do povo”[1]. Apesar de ocupar a Presidência, Bolsonaro não governa: minimiza as mortes pelo coronavírus, ataca governadores e prefeitos que tomam medidas de isolamento para combater o contágio e ensaia a tomada de medidas autoritárias no enfrentamento às instituições sempre que encontra uma brecha. Mas seriam as críticas feitas pelos caminhoneiros da mesma ordem daquelas feitas pelo Presidente? Seriam todos defensores do autoritarismo e cientes de suas consequências?

Em “O pensamento nacionalista autoritário”, o historiador Boris Fausto sugere a importância de se constatar na história brasileira as razões para a desqualificação das regras democráticas por determinados grupos em diferentes momentos históricos. Boris Fausto identifica um elemento fundamental nesse pensamento: a incapacidade do projeto democrático de dar corpo a uma verdadeira representação popular. Se é incontestável que a proposta autoritária deva ser repelida, é fundamental entender que a democracia, para alguns grupos, parece constituir um empecilho para a promoção da justiça social”[2].

Está claro que Bolsonaro não se inclui nesse grupo, mas que se aproveita desse sentimento. Em suas aparições públicas, usa bordões e símbolos que evocam a pátria, a religião e a família para arregimentar parte dessas pessoas. Para o Presidente, a Constituição de 1988 é o obstáculo que o impede de voltar aos tempos do autoritarismo da ditadura militar, aquele que alimentou seus sonhos de juventude. O Presidente não luta por direitos à igualdade e liberdade: é um líder antissistema que atua em benefício próprio. Já os caminhoneiros, quando pedem o fim das instituições democráticas, conseguem imaginar o que viria depois?

O que fica evidente na análise de falas como a que ouvimos em Bloqueio é a descrença de uma classe de trabalhadores precarizada. Uma descrença que leva a uma certa incoerência das reivindicações. Em dado momento, um dos caminhoneiros que defende a intervenção militar afirma: “Não quero ditadura, não quero nada disso. Só que a gente não tá vendo mais nada que possa ajudar (…). Só um militar tinha que tomar o poder para tirar todos eles. Senado, Congresso, fechar tudo. Depois devolver”. Devolver como?

 Alguns filmes realizados no Brasil no período de redemocratização demonstram os efeitos de práticas antidemocráticas para trabalhadores do campo e da cidade, mulheres, estudantes, artistas e todos aqueles que de alguma forma lutaram por mais direitos. Cabra Marcado para Morrer (1984, Eduardo Coutinho), Que bom te ver viva (1989, Lucia Murat), Céu Aberto (1985, João Batista de Andrade), Terra para Rose (Tetê Moraes, 1987), entre outros, vão pensar os anos da repressão como um momento de suspensão democrática, uma história interrompida que precisa se lembrada. Esses filmes dão forma, rosto, sentimento e nome para quem foi destruído a partir da destruição da democracia e, especialmente, mostram que a devolução (a mesma pedida pelo caminhoneiro) é feita com dor, injustiças, perdas e danos irreparáveis. Aqui chamaremos atenção para a história de um homem, filmado pela câmera do cineasta Eduardo Coutinho, nos anos que antecederam ao golpe militar.

III

Em abril de 1962, Eduardo Coutinho filmou um comício-protesto que reuniu cerca de 100 pessoas na localidade de Sapé, na Paraíba. O líder camponês João Pedro Teixeira tinha sido assassinado em uma emboscada, com três tiros de fuzil, a caminho de casa. Era uma reação dos grandes proprietários de terra, um tipo de prática que tinha se tornado comum desde o final dos anos 1950, quando as Ligas Camponesas no Nordeste começaram a desenvolver um importante papel de comunicação entre os trabalhadores do campo e de luta pelos seus direitos.

Coutinho produziu imagens raras que, vinte e dois anos depois, foram inscritas na disputa de memória do período da ditadura militar brasileira. Os registros foram usados em Cabra Marcado para Morrer, o primeiro documentário brasileiro que, após a Anistia Política, tratou dos reflexos diretos da ditadura na vida camponesa do interior do Brasil, que deu visibilidade a vidas sufocadas ou apagadas pelo autoritarismo, que tratou de temas espinhosos como o golpe militar, as prisões arbitrárias, as perseguições, a repressão, a clandestinidade, a tortura.

Quando filma o protesto, Coutinho registra João Alfredo Dias, o Nego Fuba, falando para o povo. Em 1995, o nome do sapateiro, lavrador, vereador do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e líder rural foi incluído na lista dos 136 mortos e desaparecidos por razões políticas entre 1961 e 1979, cujas mortes foram reconhecidas oficialmente como responsabilidade do Estado brasileiro[3]. Em 2012, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) reuniu documentos da polícia política e testemunhos que ajudaram a retraçar a trajetória do líder rural. O relatório aponta que, mesmo antes do início da ditadura militar, João Alfredo Dias havia sido detido algumas vezes por conta da sua militância e descreve pontos importantes dos Inquéritos Policias-Militares (IPMs) instaurados ainda em 1964, onde o camponês é descrito como “um agitador violento”, um orador que “incitava a subversão”, “um comunista atuante”[4] que defendia a Reforma Agrária radical. Preso nos dias que se seguiram ao golpe, ele foi liberado do Quartel do 15˚ Regimento de Infantaria de João Pessoa em 31 de agosto de 1964, dia a partir do qual não foi mais visto. O companheiro de cela e de militância Pedro Fazendeiro, solto na calada da noite no dia sete de setembro, também desapareceu.

Alguns dias após as liberações de Pedro Fazendeiro e João Alfredo Dias, dois corpos foram encontrados com marcas de tortura e carbonizados nas imediações de Campina Grande, na Paraíba. A notícia foi publicada no jornal  Correio da Paraíba, que responsabilizava o Esquadrão da Morte pela execução das vítimas até então desconhecidas. No entanto, os colegas de prisão, quando viram a fotografia no jornal, reconheceram: “esse aí é o calção de Pedro”[5]. Em 1996, a Justiça determinou a exumação dos corpos para a liberação do atestado de óbito. Apesar das duas tentativas de escavações, os corpos não foram encontrados no local onde supostamente foram enterrados em 1964.

No Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, na vizinha Pernambuco, encontramos o prontuário e um outro documento de João Alfredo Dias. Trata-se de uma carta apreendida pelo exército. Seu título é “Biografias”. Nas duas folhas de papel manchadas, não datadas, escritas de próprio punho pelo líder rural, ele descreve sua trajetória de vida pública e denuncia que foi torturado nas vezes que esteve na prisão: “Estive preso três vezes e fui submetido a torturas, nenhuma vez estive processado”. 

Eduardo Coutinho não sabia, mas estava produzindo aquela que seria a última imagem, a imagem que resta de uma vítima do Estado Brasileiro filmada quando realizava o ato que assustou os militares, ato que, na falta de provas suficientes de quaisquer crimes, foi a alegação para a sua prisão: falar em público, agitar as massas, questionar os camponeses e mostrá-los a importância de lutar pelos seus direitos. Sem saber, Coutinho filmou João Alfredo Dias cometendo o “crime” do qual foi acusado.

IV

Em 1962, o camponês João Alfredo Dias foi vítima de uma decisão arbitrária e autoritária de eliminar aqueles que pudessem comprometer o funcionamento de um governo antidemocrático. Foi preso porque protestava pelos direitos da categoria de trabalhadores do campo. Era entendido como uma ameaça.

Sabemos que a democracia é carregada de fragilidades. É legítimo para certos grupos, como a classe trabalhadora precarizada, o sentimento de que o modelo democrático falhou com eles. É perigoso, no entanto, quando esse sentimento é usado de forma oportunista por líderes que defendem práticas autoritárias.

Só na democracia diferentes classes sociais e políticas usufruem da liberdade de reivindicar, fazer exigências, lutar para que novos direitos tenham que ser conquistados. Movimentos sociais livres existem em países assumidamente democráticos. O investimento no retorno ao autoritarismo torna impossíveis essas reivindicações. Pela lógica, o protesto que vemos em Bloqueio não seria possível sem a democracia.


[1] NOBRE, Marcos. Ponto final- A guerra de Bolsonaro contra a democracia, SP, Editora Todavia, 2019, p.198.

[2] FAUSTO, Boris. O pensamento nacionalista autoritário. Jorge Zahar editor, São Paulo, 2001, p.81).

[3] Essa informação consta no Relatório da Comissão Nacional da Verdade, que foi concluído em dezembro de 2014 . Disponível em: < http://www.cnv.gov.br/>.

[4] Informações constam no Relatório da Comissão da Verdade na Paraíba. http://www.cev.pb.gov.br/

[5] Idem.

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