A pandemia além dos nossos conceitos e planos
Pedro Duarte
(PUC-Rio, Departamento de filosofia)
Talvez tenha sido com o pensamento de Sigmund Freud que descobrimos, definitivamente, que quando alguém diz alguma coisa fala tanto da coisa quanto de si. Pode-se buscar o máximo de objetividade impessoal e, ainda assim, a subjetividade transparece, nem que seja simplesmente porque se escolheu falar disso e não daquilo. Logo, a interpretação revela sempre algo do interpretado e algo do intérprete. Isso não é sequer uma falha, na medida em que, justamente, a presença do intérprete não invalida o que se diz daquilo que ele interpreta, apenas situa de onde é que aquilo foi dito. Raras vezes essa situação foi tão evidente quanto nos textos que boa parte dos filósofos contemporâneos têm publicado sobre a pandemia de Covid-19 que assola o mundo em 2020.
Renomados pensadores têm comentado a pandemia e cada um deles a entende de um modo, lançando luz sobre este ou aquele aspecto do fenômeno, mas quase todos, ao fazê-lo, revelaram sobretudo algo de si. Isso se verifica pela retomada, em geral, dos conceitos que eles já tinham elaborado anos ou décadas antes para pensar. Não gostaria, contudo, de esmiuçá-los, mas posso enumerar três: o estado de exceção de Giorgio Agamben, o comunismo de Slavoj Zizek e a mutação climática de Bruno Latour. Gostaria de sublinhar o quanto essa projeção de conceitos prontos sobre o que estamos vivendo pode ter deixado de atentar para aspectos da pandemia que me parecem relevantes.
Enquanto Agamben se preocupava com a ampliação e a intensificação do paradigma do estado de exceção, pelo qual governos limitam liberdades individuais e direitos civis em nome do combate à calamidade sanitária, protestos antirracistas de dimensões inauditas ganharam corpo por todo os Estados Unidos. Muitos filósofos, como Jean-Luc Nancy e Slavoj Zizek, reagiram às teses de Agamben, seja porque ele subestimara a gravidade do novo coronavírus, seja porque criticara medidas estatais necessárias para conter uma pandemia. No entanto, a preocupação de Agamben ainda poderia resistir a elas de algum modo: o quanto governos não usam a pandemia como pretexto para exercerem maior controle social sobre suas populações? O quanto obrigar as pessoas a ficarem em suas casas não elimina a possibilidade de ações políticas conjuntas?
Por isso, a melhor resposta a Agamben não veio de teses ou argumentos teóricos. Veio da prática. Em vez de nos mantermos numa dualidade de princípios tão genéricos quanto rígidos, de um lado a liberdade individual e de outro a necessidade coletiva, nós fomos obrigados a considerar um caso particular e, como todo particular, complexo. Uma população que está disposta a se manter confinada por causa do perigo de contaminação com o vírus é capaz de avaliar quando algum outro acontecimento se impõe de maneira grave e a leva a sair de casa para protestar. O assassinato de um homem negro, George Floyd, por um policial branco, no dia 25 de maio, em Minneapolis, foi o estopim para que a população local e, depois, quase todo os Estados Unidos afrontassem decretos e leis governamentais que orientavam quarentena. Foram fazer política.
Fico curioso para saber o que Agamben pensa disso, ou seja, não do embate das ideias com outros pensadores, mas do seu olhar para a realidade política concreta. Se o estado de exceção for tão capaz de abolir a espontaneidade política, como isso ocorreu? Toques de recolher foram desrespeitados. Pessoas tomaram cidades, com ou sem máscaras. O que as moveu? Por que desobedeceram? De onde veio esse desafio?
O que me parece é que o racismo emergiu como um problema político suficientemente forte para que valesse a pena o risco diante da pandemia. Daí que não me soe adequado pretender uma análise tão assertiva ou absoluta da realidade, como Agamben tentou. Para ele, a ausência de resistência ou manifestações populares diante de intransigências graves aos nossos deslocamentos e seus encontros afetivos, à liberdade de ir e vir ou de protestar coletivamente demonstraria o quanto colocamos a nossa sobrevivência física e biológica à frente de todas as outras dimensões da existência. Estaríamos tão adaptados à vida nua, a apenas conservar nosso corpo saudável, que abriríamos mão de todo o resto. Nivelaríamos nosso existir ao mais básico.
Mas a realidade é menos óbvia. Podemos muito bem acolher medidas restritivas até certo ponto. Podemos nos manter em casa e abdicar de agir politicamente no coletivo, se o momento assim o permitir. É isso que o exemplo dos Estados Unidos demonstra. Pois as pessoas, lá, não estavam protestando contra as medidas restritivas ou o uso de máscaras, como ocorreria depois na Alemanha e outros lugares. Não estavam contra o que o governo fizera para conter a pandemia ou buscando manter o direito a liberdades normais em uma situação anormal, a da pandemia. O que as fez romper a aceitação foi um acontecimento concreto que as convocou, em seu sentimento político, a fazer o uso de sua liberdade, saindo de suas casas e indo lutar por uma nação sem racismo. Se não fosse o assassinato de Floyd, não haveria um problema em, por alguns meses, acolher a restrição de sair. Ao mesmo tempo, leis não foram capazes de evitar que, com o assassinato, tanta gente ultrapassasse a vida nua em aglomerações e passeatas.
Paul B. Preciado, outro filósofo que escreveu sobre a pandemia, perguntou provocativamente se, caso Michel Foucault ainda fosse vivo, teria respeitado a quarentena na França ou a desobedecido, saindo de seu apartamento em Paris. Sua provocação tinha a ver com o fato de que Foucault foi o fundador de noções cruciais para as análises filosóficas atuais acerca da pandemia: biopoder, biopolítica. Ele chamou a atenção para o modo como o corpo biológico se tornara o centro de uma experiência de poder político que o disciplina e o gerencia. No caso da pandemia, então, veríamos uma atualização da estratégia da biopolítica, uma vez que, em nome da saúde do corpo, o governo acirra o seu poder sobre nós. É claro que o problema é mais complexo, e Preciado o desenvolve de modo interessante. Contudo, desconfio que a provocação é apoiada num debate de princípios gerais, embora use uma situação concreta como ilustração: teria Foucault ficado ou saído de casa? Ora, isso me parece relevante pois, se tomarmos o exemplo não como ilustração de ideias, mas como situação real, a resposta poderia depender do contexto específico. Foucault teria saído de casa, se tivesse um bom motivo para isso, como um assassinato racista que suscitou um levante popular. Do contrário, talvez ficasse em casa, pois saberia distinguir a ideologia biopolítica da realidade da pandemia.
Nesse sentido, não fico escandalizado com o fato de Agamben ter suspeitado do aparente consenso de que todos deveriam ficar em casa, de que os confinamentos deviam ser feitos. Não me causa espanto que um pensador se arrisque a pensar para além do que se estabeleceu como senso-comum de razoabilidade, especialmente um pensador que já definiu o que significa ser contemporâneo justamente como o movimento de descolamento de sua época, de extemporaneidade, de distanciamento crítico. Isso tudo é salutar para a compreensão, mesmo que se possa discordar de uma posição. Agamben está genuinamente ocupado em pensar. O problema é outro. É que ele, como é habitual na filosofia, é pouco atento à realidade empírica concreta quando ela foge dos conceitos que ele pretende nela aplicar: estado de exceção e vida nua.
Sob esse aspecto, Zizek também parece cair na mesma cilada. Olha para o caráter global da pandemia e deduz daí que superaremos as divisões dos estados nacionais em nome de organismos políticos internacionais. Vê medidas de assistência aos mais pobres tomadas mesmo por partidos de direita e supõe daí que o capitalismo está se enfraquecendo e que um novo comunismo emergirá. Ora, as duas observações de Zizek sobre o que se passa podem ser verdadeiras, mas há outras que, se ele fizesse, colocariam mais dúvida sobre o que ele deduz ou supõe. Se a pandemia evidencia que temos problemas mundiais, o seu enfrentamento, infelizmente, mostra que, ainda assim, várias soluções nacionais foram procuradas, desde o fechamento de fronteiras até a garantia de vacinas futuras para países ricos via compra direta, sem falar na responsabilização da China por muitas nações. Se houve assistência financeira aos mais pobres, com políticas de injeção direta de renda, ela se fez claramente só de modo temporário, não estrutural, e não há nada que garanta que ela continue ou seja uma tendência. Em suma, também aqui, mais atenção à realidade naquilo que ela escapa aos conceitos traria um panorama complexo, no qual dúvidas teriam mais espaço do que apostas certas.
O mesmo vale para Bruno Latour. Ele considerou que a pandemia é uma crise e, como tal, vai acabar, mas que ela nos mostrou que é possível uma coisa, até então desacreditada, e que é crucial para lidar com a mutação climática do aquecimento global gerada pelo mundo industrial. Que coisa é essa? Parar ou desacelerar. Deixamos de trabalhar e de nos locomover, de produzir e de consumir. Ora, justamente isso é que precisamos para conter o desastre ecológico futuro que muitos anunciam para o antropoceno. No entanto, para mim ao menos não ficou nada claro que podemos parar.
O fato de que, por algumas semanas ou alguns meses, paramos e deixamos nosso modo de vida habitual suspenso não significa que isso seja realmente possível. Pessoas entraram em depressão. Outras se suicidaram. Várias querem voltar a trabalhar. Há uma crise econômica terrível começando porque paramos. O desemprego é enorme. É claro que entendo a tese de Latour e seu encaminhamento: que não seria o de pararmos por completo, mas repensarmos o mundo para não voltar ao modelo anterior. Entretanto, a pandemia poderia facilmente levar à conclusão oposta à dele: o que se provou foi que, como nos diziam antes, não é possível parar, pois as consequências são horríveis. O fato de que paramos pode significar para alguns que podemos parar ou o contrário: que não podemos. Sinto falta de que Latour considere que existe essa outra possibilidade.
Por um lado, a desconsideração de Agamben sobre as atividades políticas norte-americanas que desafiam o estado de exceção, a cegueira de Zizek para operações que se colocam em marcha na manutenção do capitalismo a despeito do vírus que ele pensa que será o golpe de morte no sistema e o menosprezo de Latour sobre como a traumática parada da pandemia pode significar, para muitos, que o único modo de vida possível é o que temos revelam um velho pecado filosófico: muita força nas ideias e pouca observação empírica, muita inteligência mental e falta de perspicácia histórica. Não é mero acaso que filósofos pensem bem categorias gerais e errem tantos juízos particulares, ou seja, que se atrapalhem na hora de passar do espírito ao mundo. É como se a filosofia – pelo seu poder mesmo de pensar – estivesse constantemente ameaçada, pelo seu exercício especulativo, de se perder voando nas alturas dos céus ou soterrar-se nas profundezas dos fundamentos, ou seja, indo para cima ou para baixo de onde está o mundo. O esforço de compreender, no exato calor da hora do acontecimento, a pandemia de Covid-19, parece trazer à filosofia um desejo de contato com o mundo, mas que talvez seja traído, aqui e ali, por essa espécie de ignorância das ideias.
Por outro lado, de uma perspectiva mais psicológica talvez, é como se a preocupação de Agamben, a convicção de Zizek e a esperança de Latour não fossem muito mais do que isso: preocupação, convicção e esperança. Ou seja, esses sujeitos, diante da pandemia, continuaram a ser os sujeitos que são, e seus pensamentos, mesmo que possam ajudar a compreender este ou aquele aspecto do objeto interpretado, revelam um tanto ou até mais dos intérpretes: não somente dos seus conceitos, mas da disposição afetiva preponderante em cada um. Filósofos pensam e sentem, com ou sem a pandemia. Não acho que nenhuma dessas observações retire a relevância do que esses e outros autores têm escrito. Eles nos fazem pensar, e isso é tudo o que se pode ou deve pedir à filosofia. Fazem pensar, porém, também naquilo que pode ter ficado por eles impensado.
Por fim, uma última coisa que me pergunto. Será mesmo que, no longo prazo da história pregressa, a pandemia que vivemos é uma coisa nova? Muitos filósofos que escreveram sobre a pandemia foram tomados de um entusiasmo, seja ele otimista ou pessimista, uma vez que ela seria um ponto de inflexão para nosso mundo. Poucos filósofos adotaram um tom mais comedido. Jacques Rancière e Alain Badiou estão entre estes. O último, porém, afirma que a pandemia de Covid-19 não seria nova somente porque nas décadas recentes convivemos com várias outras epidemias, inclusive a que, em termos de tipologia, foi a que antecedeu a atual: a Sars-CoV-1, já que esta agora é Sars-CoV-2. Ele cita ainda a aids, o ebola e a gripe aviária. Em suma, o novo coronavírus não é exatamente um evento, para Badiou, ou seja, algo realmente novo e sem precedentes.
Lendo relatos de historiadores, contudo, o que me chama a atenção é um rastro bem mais antigo do que este que Badiou notou. Evidentemente, o mundo do século XXI é único, como sempre uma época é única em sua realidade histórica e espiritual. Mas, o que chama a atenção, tanto nos registros factuais quanto na literatura ficcional, é como as epidemias sempre estiveram entre nós. Data de 541 a primeira pandemia de que se tem notícia. Originou-se no Egito, atingiu a Alexandria e a Palestina e chegou a Constantinopla. O historiador Procópio escreveu que o movimento da pandemia parecia dotado de intenções conscientes, como se temesse que alguma parte do mundo escapasse. Nenhum dado da época é preciso, mas se fala em 10 mil mortos a cada dia, embora a maior parte das pessoas tivesse sintomas leves. A peste foi recorrente por dois séculos.
Nas tragédias gregas de Sófocles, também havia peste. Era o que acometia a Tebas de Édipo, por exemplo. Mas não se tratava de peculiaridade da antiguidade. Na era moderna, com Shakespeare, uma epidemia desempenha papel crucial em uma das mais famosas tragédias que conhecemos, Romeu e Julieta. Frei João era o emissário incumbido de avisar a Romeu que a morte de Julieta era uma farsa, mas não consegue entregar o recado porque há uma peste em curso e os guardas o impedem de chegar à cidade. O resto todo mundo sabe: Romeu se suicida achando que sua amada falecera e ela, depois de acordar, faz o mesmo. Pois é: uma epidemia foi responsável pela maior tragédia amorosa da ficção ocidental. Mais tarde, Goethe chegaria a reclamar que o único assunto da sua época era um surto de cólera. Nenhuma novidade no tema, portanto.
E, ainda assim, nos vimos surpreendidos pela pandemia de Covid-19. Tal surpresa não se radica no ineditismo do fato em si. Sobram precedentes para ele, na história distante ou recente. Entretanto, ninguém imaginava isso. Minha hipótese é que a surpresa se explica por termos acreditado, antropocentricamente, que o mundo tinha sido dominado pelos seres humanos. Só que não. Como afirmou Elizabeth Kolber, a história não é feita só por seres humanos, mas também por micróbios. Ou, como cantou John Lennon, a vida é o que acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos.